Neide Lopes, a primeira artista de ponta do festival de Parintins
Artista de ponta รฉ o termo utilizado nos bois para aqueles que criam as alegorias

Mariane Veiga, porย Dassuem Nogueira
Publicado em: 27/06/2024 ร s 17:56 | Atualizado em: 27/06/2024 ร s 18:07
Depois de 32 anos trabalhando como artista de alegoria, dos quais 23 anos no eixo Rio-Sรฃo Paulo, รฉ a primeira vez que Neide Lopes assina como artista de ponta no festival de Parintins.
Artista de ponta รฉ o termo utilizado nos bois para aqueles que criam as alegorias. Eles e ela concebem e dirigem o processo de produรงรฃo feito juntamente com uma equipe multiartรญstica.
Em 57 anos de festival folclรณrico รฉ a primeira vez que uma mulher aparece nessa categoria.
Segundo a revista temรกtica do Garantido, Neide assina a alegoria do primeiro momento folclรณrico do dia 29 de junho.
Uma longa caminhada
Neste ano serรก a primeira vez que Neide assina uma alegoria como artista de ponta. Contudo, a sua trajetรณria nos galpรตes do Garantido e nos barracรตes de escolas de samba รฉ longa.
E coincide com a histรณria de seu casamento com o artista Carlos Lopes, 54 anos, hรก 32 anos.
Em entrevista ao BNC Amazonas, Neide explica que a arte das alegorias รฉ um saber oral que se aprende fazendo.
Por isso, o mais comum รฉ que os artistas de alegoria tenham um mestre. Assim, os galpรตes sรฃo como uma escola onde eles trabalham em todas as etapas atรฉ se tornarem artistas de ponta.
Contudo, Neide e seu esposo Carlos sรฃo uma exceรงรฃo. Quando se conheceram, Neide era contadora e Carlos, jogador de futebol. E conciliavam suas atividades com o trabalho de artesรฃ e escultor do boi mirim.
Em 1993, eles fizeram a maquete de uma alegoria e apresentaram para o mestre Jair Mendes, que na รฉpoca era presidente do Garantido. Ao vรช-la, o mestre os contratou.
Desde entรฃo Neide trabalha ao lado de seu esposo. Eles ficaram no Garantido atรฉ 2021. Juntos, eles trabalharam em diversas festas pelo Brasil.
O casal jรก trabalhou como artistas de alegoria no carnaval em Manaus, nas cirandas de Manacapuru e no Sairรฉ de Alter do Chรฃo, no Parรก.
No carnaval de Sรฃo Paulo, trabalharam nas escolas de samba Nenรฉ de Vila Matilde, Tucuruvi e Impรฉrio de Casa Verde, onde permaneceram por sete anos.
Em seguida atuaram no carnaval do Rio de Janeiro, nas escolas Grande Rio, Salgueiro, Impรฉrio Serrano, Uniรฃo da Ilha e Caprichosos de Pilares.
Na capital carioca, eles realizaram trabalhos artรญsticos em outros setores, como na cobertura fluรญda do museu de arte do Rio de Janeiro.
Nos รบltimos cinco anos, trabalharam na escola de samba Mocidade Alegre, de Sรฃo Paulo.
Depois de trabalhar mais de vinte anos fora, o casal voltou ao Amazonas. No ano passado, trabalharam na ciranda Guerreiros Mura de Manacapuru. E retornaram a Parintins para trabalhar no projeto 2024 do boi Garantido.
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Reconhecimento do trabalho
Neide se formou em produรงรฃo cultural pelo Instituto Federal de Educaรงรฃo, Ciรชncia e Tecnologia do Rio de Janeiro (IFRJ), em 2021.
Em seu trabalho de conclusรฃo de curso, ela conta os bastidores da construรงรฃo de alegorias nos barracรตes das escolas de samba da capital fluminense, estabelecendo relaรงรตes com o trabalho nos galpรตes de Parintins.
Nele, a artista aborda questรตes de gรชnero, seguranรงa do trabalho e destrincha o complexo processo tรฉcnico da criaรงรฃo e construรงรฃo de alegorias.
Desde a pesquisa, concepรงรฃo, desenho, projeรงรฃo no chรฃo, fatiamento, tรฉcnicas de engenharia civil, arquitetura, marcenaria, serralheria, artesanato, hidrรกulica, robรณtica.
Neide lembra que sempre trabalhou com o esposo em toda a produรงรฃo. Mas, que foi a partir de sua pesquisa de trabalho de conclusรฃo de curso, em 2021, que passou a se questionar o porquรช de seu nome nunca aparecer como artista.
โMesmo tendo contrato ร parte, trabalhando junto com ele e recebendo por isso, apenas o nome dele aparecia. Eu nรฃo sou esposa? Nรฃo, eu sou profissionalโ.
Situaรงรฃo semelhante ocorria em Sรฃo Paulo, quando ela elaborava as sinopses dos enredos das escolas de samba. Contudo, nas comissรตes de carnaval sรณ o seu marido aparecia como carnavalesco.
Neide faz a reflexรฃo de que o trabalho das mulheres nos galpรตes e barracรตes foi naturalizado como de ajudantes de seus maridos.
Em Parintins, ela contabilizou mais de vinte mulheres trabalhando na condiรงรฃo de โesposa ajudanteโ no Garantido.
Todavia, Neide disse considerar que, se estรฃo fazendo junto os trabalhos, entรฃo elas tambรฉm sรฃo artistas.
Neide diz que o Garantido adotou a postura de assumi-las como tal. Ela atribui isso ao fato de a atual gestรฃo conhecer a realidade dos galpรตes.
Desse modo, ela avalia que โnรฃo se trata de um processo de empoderamento de mulheres, mas de reconhecimento de seu trabalho e de igualdade de gรชneroโ.
Neide lembra que, quando comeรงou no Garantido em 1993, precisava deixar seu nome na portaria dos galpรตes todos os dias, pois as mulheres tinham entrada restrita.ย
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Aย mulher no galpรฃo
Sobre como รฉ ser mulher em um ambiente onde a presenรงa feminina ainda รฉ pouca, Neide fala que o desafio mais comum que enfrenta รฉ a dรบvida quanto ร sua capacidade enquanto mulher.
O que abarcaria desde compreender os processos produtivos ร realizaรงรฃo de cรกlculos, operar mรกquinas pesadas, como bitolas de solda, carregar peso.
Quando ela forma as equipes, faz questรฃo de alertar sobre o assรฉdio. Ela orienta que as brincadeiras tรชm limites e devem ser feitas do portรฃo do galpรฃo para fora.
Com o marido, dรฃo exemplo e nรฃo se tratam com intimidade em ambiente do trabalho. โร preciso separar as coisasโ.
Outra questรฃo que aponta รฉ que os artistas tรชm famรญlias e os espaรงos de trabalho nรฃo estรฃo preparados nem para as mulheres nem para as crianรงas.
Quando ela trabalhou no Impรฉrio de Casa Verde, em Sรฃo Paulo, a escola construiu um hangar com apartamentos para que as famรญlias ficassem por perto e, assim, facilitasse o cuidado com os filhos.
Neide e Carlos tรชm trรชs filhos. Eles se criaram em barracรตes e galpรตes e hoje tambรฉm trabalham como artistas.
Assim como em Parintins, quase nรฃo hรก mulheres trabalhando em alegorias no eixo Rio-Sรฃo Paulo. Hรก muitas mulheres na confecรงรฃo de fantasias.
No sudeste, Neide fazia formaรงรฃo para que mais mulheres pudessem aprender a construir alegorias.
Ela estรก sempre atenta para inserir nesse trabalho mulheres vรญtimas de violรชncia domรฉstica, ex-presidiรกrias, mรฃes solo, e outras que necessitam de apoio.
Neide tambรฉm falou que hรก trabalhos complexos como a decoraรงรฃo das alegorias, que sรฃo funรงรตes femininas nos galpรตes comumente subestimadas.
Mas, a artista ressalta que รฉ um trabalho complexo que envolve tรฉcnicas que vรฃo do revestimento atรฉ a finalizaรงรฃo.ย
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As mulheres do galpรฃo
Em Parintins, Neide fez questรฃo de destacar Maria, de 66 anos, que trabalha no revestimento de papelaรงรฃo e massa, ajuda na ferragem e faz de tudo um pouco.
Maria compรตe a equipe de Luiz Sampaio e Arthur.
E Carmem, coordenadora do setor tribal do Garantido, com quem trocava experiรชncias de trabalho tanto sobre materiais quanto lideranรงa feminina de equipe.
Quando Neide comeรงou nos galpรตes, em 1993, Carmem jรก era chefe de tribo, responsรกvel pela concepรงรฃo e confecรงรฃo de fantasias para o que hoje รฉ o item povos indรญgenas.
Em sua equipe, hรก ainda trรชs mulheres. Dona Cleide Reis, 69 anos, costura fantasias hรก mais de 30 anos para o Garantido. Em 2024, ela estreia na funรงรฃo de costureira de estamparia para projeรงรฃo de imagem grande.
Outra artista รฉ Raquel, 45 anos, que trabalha no revestimento e adereรงamento das alegorias. E Adrielle Paz, 26 anos, que exercia a funรงรฃo de artista de tribos e estรก hoje em sua equipe.
Por fim, Neide avalia que as coisas estรฃo melhorando para o trabalho das mulheres nos galpรตes.
Um dos projetos com Carlos em sua volta a Parintins รฉ ensinar tudo que aprenderam em sua vasta experiรชncia.
Foto: Garantido/divulgaรงรฃo