‘Ninguém é doido de dizer que eu não te amo…’
Música vira símbolo de uma nova era do boi vermelho, conectando paixão individual ao clamor coletivo e à identidade amazônica.

Adrissia Pinheiro, por Walmir de Albuquerque Barbosa*
Publicado em: 04/07/2025 às 10:00 | Atualizado em: 04/07/2025 às 13:17
“Ninguém é doido de dizer que eu não te amo/ Ninguém duvida que esse amor é todo teu/Minha paixão é de veludo, espuma e pano/ Eu sou teu, e tu és meu”
(“Esse boi é meu’, composição de Gaspar Medeiros, Domingos Barbugian, Paulo Lindoso e Jorge Renato).
O sucesso musical do boi Garantido no Festival Folclórico de Parintins, 2025, assim como a canção ‘Vermelho”, de Chico da Silva (1996), que abriu o ciclo áureo do festival e virou canto universal, “Esse boi é meu” atualiza o rito para um dos mais aguerridos grupos folclóricos do Brasil e que, junto a seu rival (Caprichoso), fez explodir a alegria na Amazônia brasileira, numa exaltação à cultura cabocla, mesclada e trabalhada na linha de várias tradições, mas que decidiu por um caminho inovador na perpetuação da tradição no mundo líquido das celebrações da tal pós modernidade, mudando o rumo da prosa.
Cantada por cerca de 30 mil torcedores dentro de uma arena e contando com o silêncio obsequioso dos contrários, virou um grito de guerra, assemelhado aos ritos tribais ancestrais; contudo, neste caso, apoteótico e mágico.
A música “Vermelho”, sucesso desde 1996, quando foi composta e tornada pública, marca o tempo das ideologias, quando o folclore dá uma virada comunicacional, descolando-se das mãos do conservadorismo para tornar-se grito de resistência.
Nesse diapasão, virou hino do boi Garantido, ganhou o mundo na voz de vários intérpretes nacionais e estrangeiros.
“Esse boi é meu” tem uma outra “pegada”: individualista, frágil e fluida, que se expressa no verso “minha paixão é de veludo, espuma e pano”, conteúdo imaterial semelhante ao conteúdo material do boi amado, feito, também, de veludo, espuma e pano, mas que, paradoxalmente, explode para todo mundo na forma “instagramável” de paixão coletiva, isto é, publicizada ao extremo, na coreografia ensaiada para expressar graça, vibração e espontaneidade.
Assim, cantada no coletivo, elimina-se qualquer suspeita de egoísmo possessivo ao gritar:
“Eu vou deixar bem claro/Que esse boi é meu, esse amor é meu/ Não compartilho, é meu, é meu, é meu”.
Não há o que condenar na canção, pois é o sinal dos tempos, em que os espetáculos em formato de festival de música, em coro, explodem numa manifestação tribal e identitária das “galeras de fãs” e dos apaixonados à moda antiga, dentro de arenas ou outros espaços apropriados, sob o efeito psicodélico de luzes, fogos, nuvens de fumaça, multidões e efeitos tecnológicos parametrizados associados às vozes, ao cenário e aos gestos, ampliando a dinâmica da festa, dando à mesma a configuração ritualística tribal, além de possibilitar aos presentes o registro do “eu estive lá no momento mágico”, no agora!
O simbolismo das dicotomias vermelho e azul, boi do povo e boi da elite, “boi de artesania” e “boi high tech”, boi da tradição e boi moderno não são, apenas, detalhes, quando se busca alcançar a multidimensionalidade da festa, sobretudo, as relacionadas com as classes sociais que representam: o engajamento político e ideológico na comunidade e os interesses do mundo globalizado.
Nesse caso concreto, as latas de Coca-Cola são vermelhas ou azuis para atender aos dois lados, tal qual se vestem os corações e mentes dos torcedores, permitindo-nos enquadrar tais propósitos como capital social da comunidade associado ao modus operandi do capitalismo avançado.
Como cultura popular e folclórica, assume uma posição indutivista: “um corpo com características próprias, inerente às classes subalternas, com uma criatividade específica e um poder de impugnação dos modos culturais prevalentes sobre o qual se fundaria a sua resistência específica” (“Dicionário crítico de política cultural”. Teixeira Coelho. SP: Editora Iluminuras, 1997, p.120).
Desse modo, afasta-se das “lentes da cultura dominante”, recusa o epíteto de “ópera popular”, como se quis rotular durante algum tempo, em oposição ao festival de ópera que se realiza, anualmente, no Teatro Amazonas, em Manaus.
E por três dias seguidos, antecedidos por quase um ano completo de preparação, o povo da ilha Tupinambarana, onde situa-se a cidade de Parintins, une-se a turistas do mundo todo, para expor a sua arte, o seu canto, o seu modo de vida e sua visão de mundo, imortalizadas nas canções que balançam os bois Caprichoso e Garantido!
*O autor é jornalista profissional.
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Foto; divulgação