O boto e o cavalo

Dassuem Nogueira aponta que ambos sรฃo sรญmbolos da crise climรกtica. Leia no artigo da antropรณloga.

Ednilson Maciel, por Dassuem Nogueira*

Publicado em: 26/08/2024 ร s 17:27 | Atualizado em: 26/08/2024 ร s 17:27


Nos รบltimos meses vimos imagens comovedoras de um boto e um cavalo resistindo por suas vidas, resgatados por humanos em dois extremos climรกticos: a seca no rio Madeira (AM) e a enchente no rio Guamรก (RS).

O cavalo, nominado como Caramelo, passou horas em pรฉ sobre um telhado, atรฉ que os humanos lhe resgatassem em um barco.

O boto vermelho foi carregado ร s pressas por um pescador, que correu para lhe levar ร s รกguas mais fundas na estiagem atรญpica do rio Madeira.

Em dois extremos, o norte e o sul do Brasil, sรฃo sรญmbolos da crise climรกtica na Amazรดnia e no extremo sul gaรบcha respectivamente.

O boto e o cavalo viraram uma charge assinada pelo movimento dos (humanos) atingidos por barragens (MAB) na Amazรดnia.

O boto, o cavalo e o humano sรฃo trรชs mamรญferos sociais, interagem entre si de modos diferentes. Mas sรฃo vรญtimas equivalentes da aรงรฃo predatรณria de apenas um deles sobre o planeta: o humano.

O boto e o cavalo sรฃo animais emblemรกticos de duas identidades regionais de humanos.

O cavalo e os gaรบchos

Os gaรบchos tรชm uma histรณria particular com o cavalo. Ele faz parte de um conjunto de sรญmbolos que representam a identidade gaรบcha. O que nos leva a histรณria da resistรชncia dos indรดmitos Charrua. O uso do chiripรก (uma espรฉcie de saia), o hรกbito de tomar chimarrรฃo, a invenรงรฃo do churrasco de gado feito no fogo de chรฃo e a montaria a cavalo pelos pampas como sinรดnimo de liberdade tรชm origens indรญgenas.

Os Charrua viviam nos pampas gaรบcho, paraguaio e parte do argentino quando a Pindorama, hoje Brasil, comeรงou a ser visitada pelos colonizadores europeus no sรฉculo XVI.

Os Charrua eram caรงadores, coletores e nรดmades. Ficaram conhecidos por serem indomรกveis. Pois quando as missรตes jesuรญticas espanholas comeรงaram a fazer as primeiras โ€œreduรงรตesโ€ dos povos Guarani, no sul, por volta de 1600, os Charrua nรฃo foram subjugados.

As reduรงรตes do Guayrรก (sul do Mato Grosso do Sul), Tape (oeste do Rio Grande do Sul) e Itatim (oeste do Paranรก) tinham como objetivo catequizar os Guarani para lhes fazer trabalhar nas benfeitorias.
Por serem povos agricultores, os Guarani jรก dominavam a tรฉcnica da plantaรงรฃo da erva mate, que รฉ sagrada para eles. Assim, alรฉm de gado e cavalos, as missรตes tinham grandes ervais.

Nos anos em que a coroa espanhola dominou a portuguesa, perรญodo conhecido como uniรฃo ibรฉrica (1580 a 1640), os portugueses nรฃo encontraram resistรชncia para ultrapassar a linha do Tratado de Tordesilhas, o sul, atรฉ entรฃo territรณrio espanhol.

Em 1624, os paulistas ou sertanistas, aliados dos portugueses, passaram a atacar as missรตes jesuรญticas espanholas para escravizar os indรญgenas em Sรฃo Paulo. Na รฉpoca, estima-se, que tais missรตes concentravam de 150 a 200 mil indรญgenas Guarani.

Nos ataques, o gado e o cavalo se espalhavam pelos pampas, conhecidos como excelentes pastos naturais. Assim, os Charrua passaram a caรงรก-los.

Eles aprenderam a montar de um modo รบnico: se penduravam de lado segurando a crina do cavalo com uma das mรฃos e com a outra empunhavam uma lanรงa. Montados, tambรฉm usavam boleadeiras em suas guerras contra os inimigos.

A boleadeira รฉ uma arma que consistia em uma corda com pedra amarrada na ponta. Ao girar a corda, pega-se impulso para arremessar a pedra na direรงรฃo do inimigo.

Quando os jesuรญtas espanhรณis reclamaram a invasรฃo e destruiรงรฃo dos paulistas nas missรตes, conseguiram autorizaรงรฃo da coroa espanhola para armar os Guarani.

Em uma batalha รฉpica, no local conhecido como Mโ€™bororรฉ, eles eliminaram quase mil homens empenhados em novo ataque. Apenas 120 paulistas voltaram ร  capitania de Sรฃo Vicente, onde hoje รฉ a cidade de Sรฃo Paulo. Depois disso, os paulistas, que ficaram conhecidos como bandeirantes, dedicaram seus esforรงos nas recรฉm-descobertas Minas Gerais.

No entanto, os Guarani permaneceram armados. E passaram a defender as benfeitorias das missรตes das incursรตes dos Charrua. Pois, eles passaram a fazer das missรตes uma fonte de gado, montaria e erva-mate. E, desse modo, comeรงou a sua dizimaรงรฃo.

Mas outra prรกtica foi crucial para isso. Os estancieiros, donos de grandes propriedades prรณximas ร  onde hoje รฉ o Uruguai, passaram a pagar por testรญculos e pares de orelha que comprovassem o assassinato de indรญgenas Charrua, que tambรฉm lhes levavam as benfeitorias. Assim, proliferaram-se na regiรฃo os caรงadores de indรญgenas.

Os รบltimos Charrua foram exibidos em um zoolรณgico em Paris. Porรฉm, apรณs sua dizimaรงรฃo, os gaรบchos riograndenses, tambรฉm os argentinos, uruguaios e paraguaios, incorporaram a representaรงรฃo indรดmita dos Charrua.

Desse modo, todos os sรญmbolos culturais, como o uso do chiripรก (que usam sobre as calรงas de tipo bombacha), o churrasco, o chimarrรฃo e, por fim, a montaria a cavalo que permitia uma vida livre pelos pampas, passaram compor a identidade dos primeiros gaรบchos. E รฉ uma imagem celebrada atรฉ hoje no Rio Grande do Sul.

Uma demonstraรงรฃo clara de que, para a colonizaรงรฃo, โ€œรญndio bom, รฉ รญndio mortoโ€. Aliรกs, umas das teorias para a origem do termo gaรบcho seria que este รฉ uma corruptela de um termo em lรญngua quรฉchua, falada nos andes, que significaria โ€œnascido de ventre indรญgena com um forasteiroโ€. Pois, os primeiros gaรบchos, eram fruto dessa conjunรงรฃo violenta entre colonizadores e indรญgenas.

O boto e os ribeirinhos

Boto รฉ uma palavra portuguesa utilizada para se referir aos golfinhos marรญtimos em Portugal. Atualmente, o termo estรก em desuso naquele paรญs. Mas, o termo colonizador, serve para diferenciar os golfinhos marรญtimos dos seus irmรฃos fluviais.

No Paranaguaรงu, cuja traduรงรฃo do tupi seria โ€œgrande irmรฃo do marโ€, hoje conhecido como rio Amazonas, os botos exercem fascinaรงรฃo sobre os humanos.

O boto tucuxi e o boto vermelho โ€“ esse รบltimo que fora do Paranaguaรงu รฉ conhecido como boto-cor-de-rosa – se relacionam de modo distinto com os humanos.

O boto tucuxi tem por caracterรญstica viver com suas famรญlias, nรฃo mais que isso. Eles sรฃo conhecidos por serem brincalhรตes, fazendo pequenas maldades, como virar canoas dos pescadores. Mas tambรฉm salvam os humanos de afogamentos e acham e devolvem pertences perdidos nas รกguas.

O boto vermelho, de maior porte, vive em bandos. Nรฃo se relaciona com intimidade com os humanos. Talvez por isso, recaia sobre ele a lenda de que se ingera em homem nas noites de festa para seduzir as moรงas incautas.

Sendo um mamรญfero, suas genitรกlias se assemelham ร s dos humanos. Por isso, atribui-se aos botos a capacidade de estimular a potencialidade sedutora dos humanos. Tal crenรงa faz com que suas genitรกlias sejam, cruelmente, usadas para fazer โ€œpussangaโ€, um irremediรกvel feitiรงo de amor.

Sรฃo tรฃo fascinantes que, no tambor de mina, religiรฃo afro-amazรดnica, os botos sรฃo entidades que incorporam nos humanos e trazem visรตes e mensagens do mundo invisรญvel.

O que รฉ, concretamente, possรญvel observar รฉ que os botos da Amazรดnia se relacionam intimamente como as gentes nas รกguas por entre a grande floresta. Especialmente, com os pescadores com quem ora disputam ora se ajudam na captura dos peixes.

Sua inteligรชncia รฉ capaz de se comunicar com a humana, talvez por isso, eles sejam fascinantes a ponto de terem um lugar de socialidade entre nรณs: um vizinho brincalhรฃo, um festeiro, uma potรชncia do amor, uma entidade.

*A autora รฉ antropรณloga

Foto/arte: reproduรงรฃo/internet