O legado do G20 e os desafios para o Brasil

Conforme o autor deste artigo, o maior legado do G20 no Brasil terรก sido, quem sabe, a transformaรงรฃo dos discursos em prรกtica. Leia Samuel Hanan

O legado do G20 e os desafios para o Brasil

Ednilson Maciel, por Samuel Hanan*

Publicado em: 09/12/2024 ร s 10:22 | Atualizado em: 09/12/2024 ร s 10:22

Durante a recente reuniรฃo dos chefes de estado dos paรญses do G20, realizada no Rio de Janeiro, o presidente do Brasil, Luiz Inรกcio Lula da Silva, em seu pronunciamento como lรญder polรญtico do paรญs anfitriรฃo do encontro, chamou a atenรงรฃo de todas as naรงรตes para o legado do G20 nos รบltimos 16 anos.

Lula afirmou, baseado em sua experiรชncia pessoal, que no perรญodo entre 2008 (durante seu segundo mandato) e 2024, o mundo tornou-se pior, com pobreza, misรฉria, fome, desigualdades gritantes, gerras e conflitos entre naรงรตes, com milhares de vรญtimas, inclusive civis.

Destacou o presidente brasileiro que os paรญses do G20 sรฃo responsรกveis por 85% do PIB mundial, gerando US$ 90 trilhรตes/ ano, por 75% do comรฉrcio mundial e por 67% da populaรงรฃo mundial, com seus 5,42 bilhรตes de habitantes.

Tรฃo decepcionante quanto preocupante รฉ o fato de o grupo das 20 naรงรตes mais ricas do planeta, com tamanha expressividade, ter produzido, nos รบltimos 16 anos, uma realidade global conflituosa e desigual, deixando pior o que deveria ser melhorado.

Conveniente recordar que o G20 estabelece como principais objetivos debater problemas econรดmicos e financeiros de alcance global, como crises financeiras; crescimento econรดmico sustentรกvel; comรฉrcio internacional; inflaรงรฃo e emprego; polรญticas de combate ร  fome; zelar pelo meio ambiente, evitando crises e desastres climรกticos; promover o desenvolvimento sustentรกvel e estreitamento, via diรกlogo das relaรงรตes entre paรญses visando tambรฉm evitar reduzir as guerras e seus impactos, e o combate global ร  corrupรงรฃo, praga que vem destruindo muitos paรญses.

Sua carta de propรณsitos รฉ de um apelo extraordinรกrio para a busca de apoio e consensos nas teses e objetivos desse fรณrum informal voltado ร  promoรงรฃo do debate aberto e construtivo entre paรญses.

Da reuniรฃo no Rio de Janeiro resultou a assinatura, pelos paรญses do G20, de um documento de priorizaรงรฃo de combate ร  fome, ร  misรฉria e ร  pobreza, e de cooperaรงรฃo mundial para a preservaรงรฃo das florestas em pรฉ e de cuidados com a biodiversidade. Entretanto, รฉ preciso passar do discurso ร  prรกtica.

ร‰ necessรกrio que os governos do G20 realizem estudos para dimensionar os recursos financeiros necessรกrios para colocar em prรกtica as prioridades globais definidas no encontro no Brasil, tornando realidade os programas de intenรงรตes consensuais. Caso contrรกrio, as aรงรตes globais nรฃo alcanรงarรฃo concretude e poderรก se repetir o fracasso dos รบltimos 16 anos. O passado รฉ importante para a reflexรฃo, nรฃo para a repetiรงรฃo.

Por outro lado, os paรญses emergentes e os que ascenderam ร  posiรงรฃo de expressividade polรญtica e econรดmica tambรฉm reivindicam a revisรฃo dos organismos internacionais com maior democratizaรงรฃo, eliminaรงรฃo de vetos, e ampliaรงรฃo do multilateralismo. No entanto, tudo isso deveria vir acompanhado da proposiรงรฃo de aumentar as participaรงรตes proporcionais de responsabilidade global. Estamos falando de custos a serem absorvidos por todos. Nรฃo funciona a equaรงรฃo de direitos para um lado e obrigaรงรตes para outro.

ร‰ fundamental tambรฉm que muitos dos governantes faรงam uma profunda reflexรฃo do que ocorreu em seus prรณprios paรญses. Isso vale inclusive para o Brasil. Nos รบltimos 16 anos โ€“ citados pelo presidente no G20 โ€“ e em um perรญodo mais amplo โ€“ de 2003 a 2024 -, o paรญs foi governado por um mesmo partido em 60% e 70% do tempo, respectivamente. E os resultados merecem uma anรกlise interna.

Nesses 22 anos, o Brasil caiu da 77ยช para a 89ยช posiรงรฃo no ranking da Organizaรงรฃo das Naรงรตes Unidas (ONU) sobre o รndice de Desenvolvimento Humano (IDH), calculado com base em educaรงรฃo, renda e saรบde.

No coeficinte Gini, instrumento usado mundialmente para medir grau de concentraรงรฃo de renda e apontar a diferenรงa entre rendimentos dos mais pobres e mais ricos, o Brasil permanece na 149ยช posiรงรฃo entre 181 paรญses, ao lado do Congo e ligeiramente inferior ร  Guatemala.

A concentraรงรฃo de renda tambรฉm รฉ problema crรดnico. Relatรณrio da Oxfan divulgado em janeiro de 2024 mostra que, no Brasil, os 1% mais ricos detรชm 63% das riquezas nacionais, enquanto os 50% mais pobres detรชm apenas de 2% a 3% do patrimรดnio do paรญs. O mesmo estudo aponta que 27% dos ativos financeiros da naรงรฃo estรฃo nas mรฃos de 0,01% da populaรงรฃo brasileira.

A desigualdade nacional, segundo o relatรณrio, รฉ ainda mais gritante. Revela que a renda mรฉdia dos brancos estรก mais de 70% acima da renda da populaรงรฃo negra. Ou seja, o Brasil estรก mais perto de uma plutocracia do que de uma democracia.

A estratificaรงรฃo de renda indicada um cenรกrio triste e preocupante: 90% da populaรงรฃo brasileira ganha menos de R$ 3.500, considerando-se que do valor bruto de R$ 3.600,00/mรชs sรฃo deduzidos Previdรชncia Social e Imposto de Renda, no total de 17%, fazendo com que a remuneraรงรฃo lรญquida se reduza a R$ 2.890,00. Outro dado estarrecedor: mais de 30% da populaรงรฃo tem remuneraรงรฃo mensal de atรฉ um salรกrio-mรญnimo (R$ 1.412,00). Nesse grupo estรฃo mais de 70% dos aposentados pelo INSS, que somam cerca de 24 milhรตes de pessoas. Outros 4,7 milhรตes de brasileiros recebem o mesmo valor pelo Benefรญcio de Prestaรงรฃo Continuada (BPC).

O paรญs tambรฉm tira nota vermelha na educaรงรฃo. Entre os 56 paรญses avaliados pelo Programa Internacional de Avaliaรงรฃo de Estudantes (Pisa) em 2024 – os 38 membros da Organizaรงรฃo para a Cooperaรงรฃo e Desenvolvimento Econรดmico (OCDE) e mais 16 naรงรตes convidadas -, o Brasil figurou na desonrosa 44ยช posiรงรฃo.

Hรก ainda outros problemas graves, como a corrupรงรฃo. De acordo com a Transparรชncia Internacional, nos รบltimos 22 anos o Brasil caiu da 69ยช para a 104ยช posiรงรฃo no รญndice de percepรงรฃo da corrupรงรฃo. Significa dizer que existem 103 paรญses com setor pรบblico mais honesto que o Brasil, onde, segundo estimativas de R$ 200 bilhรตes a R$ 250 bilhรตes sรฃo desviados anualmente dos cofres pรบblicos, recursos que poderiam ser investidos em setores fundamentais para a populaรงรฃo como educaรงรฃo, saรบde, habitaรงรฃo, infraestrutura e seguranรงa pรบblica.

Nรฃo รฉ apenas uma questรฃo retรณrica. A violรชncia urbana mostra-se incontrolรกvel, com o avanรงo das facรงรตes criminosas e do trรกfico de drogas, e o incrรญvel nรบmero de 45 mil homicรญdios registrados a cada ano, o que faz do Brasil, em nรบmeros absolutos, o nรบmero 1 do mundo nessa macabra estatรญstica.

O combate ร  pobreza, tema abordado com muita รชnfase na reuniรฃo do G20, merece mesmo especial atenรงรฃo global. Na รndia, o paรญs mais populoso do mundo, a pobreza e extrema pobreza afetam 234 milhรตes de pessoas, cerca de 17% a 19% de seus habitantes. Na Rรบssia, o mesmo problema castiga 13 milhรตes de pessoas, o correspondente a 9% da populaรงรฃo, conforme estimativa feita pelo prรณprio presidente Vladimir Putin, em fevereiro de 2024, conforme divulgou a Agรชncia de Notรญcias ETE. A meta do governo russo de zerar pobreza em 2024 foi adiada para 2030. E, na รfrica do Sul, mesmo apรณs 30 anos do fim do apartheid, o nรญvel de pobreza da populaรงรฃo praticamente nรฃo diminuiu.

O bom exemplo vem da China. No segundo paรญs mais populoso do planeta, a pobreza atingia 98% da populaรงรฃo em 1981. Em 2023, a extrema pobreza havia sido reduzida a zero e menos de 1% dos chineses estavam na linha da pobreza.

No Brasil, entretanto, a pobreza e a misรฉria ainda sรฃo fantasmas a desafiar os governos. Entre os paรญses do G20, perde apenas para a รndia em percentual de pessoas pobres. (O Globo, 09/04/2024). Em 2008, o paรญs tinha 25,3% da populaรงรฃo em situaรงรฃo de pobreza e 8,8% em situaรงรฃo de extrema pobreza. Passados 15 anos, pouca coisa mudou, pois um terรงo da populaรงรฃo ainda vive na pobreza: sรฃo 27,5% dos brasileiros pobres e 5,8% em extrema pobreza.

Optou-se por uma polรญtica de assistencialismo, com programas como o Bolsa Famรญlia, BCP, vale-gรกs e outros que, embora ajude a aliviar a inseguranรงa alimentar, nรฃo tira ninguรฉm da pobreza nem devolve a dignidade aos chefes de famรญlia.

Nรฃo รฉ por acaso que o fenรดmeno da favelizaรงรฃo se acentua no paรญs. Hoje temos 16,4 milhรตes de brasileiros (7,7% da populaรงรฃo) vivendo em favelas, a maioria com serviรงos de รกgua e saneamento bรกsico inexistentes ou precarรญssimos em pleno sรฉculo XXI, apesar de o Brasil ocupar a 8ยช posiรงรฃo no ranking das maiores economias do mundo. ร‰ o retrato do fracaso das polรญticas pรบblicas em todas as รกreas relevantes ร  dignidade humana.

Por isso, รฉ incompreensรญvel que no รขmbito do Ministรฉrio da Fazenda tรฉcnicos estejam propondo alteraรงรตes nas fรณrmulas dos cรกlculos dos reajustes do salรกrio-mรญnimo que, se aprovados, implicarรฃo na perda de R$ 6,00/mรชs na renda do brasileiro pobre. Serรฃo cinco ou seis pรฃes a menos na mesa do trabalhador, do aposentado e dos 4,7 milhรตes de idosos beneficiรกrios do BPC.

Essa proposta, eivada de incompetรชncia e insensibilidade dos burocratas, chega a soar como deboche em um paรญs que concede renรบncias fiscais que somam mais de 5% do PIB, algo em torno de R$ 565 bilhรตes por ano. Sรฃo gastos tributรกrios da Uniรฃo, a maioria sem prazo para acabar, sem reduรงรตes ao longo do tempo, sem aferiรงรตes quanto ร  correta aplicaรงรฃo, e que nรฃo tรชm como objetivo a reduรงรฃo das desigualdades sociais e regionais, ao contrรกrio do que prevรช a Constituiรงรฃo.

Os dados oficiais mostram que nรฃo faltam recursos para a soluรงรฃo. Recursos existem, porรฉm falta vontade polรญtica para revertรช-los em polรญticas pรบblicas de qualidade em favor da maioria da populaรงรฃo que nรฃo detรฉm liberdade econรดmica e tampouco liberdade polรญtica e de expressรฃo, porque estas nรฃo existem sem a primeira.

Nรฃo hรก perspectiva dessa realidade ser transformada se os governos nรฃo mudarem a forma de ver o mundo. Sobre isso jรก alertava o fรญsico alemรฃo Albert Einstein (1879-1955) que afirmou: โ€œInsanidade, รฉ continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentesโ€. Ou, trazendo para o solo pรกtrio, o pensamento da escritora Lya Luft (1938-2021): โ€œNรฃo รฉ triste mudar de ideia, triste รฉ nรฃo ter ideia para mudarโ€.

A anรกlise da performance dos governos dos รบltimos 22 anos, nรฃo deixa dรบvida de que รฉ inadiรกvel a elaboraรงรฃo de um projeto a favor do Brasil, um plano que precisarรก ser abraรงado pela sociedade (hoje dividida) e pelas redes de comunicaรงรฃo, sem o que o paรญs nรฃo conseguirรก melhorar seus vergonhosos รญndices de desenvolvimento humano.

O maior legado do G20 no Brasil terรก sido, quem sabe, a transformaรงรฃo dos discursos em prรกtica porque somente isso poderรก garantir concretude ao sonho de uma vida melhor para os mais pobres, ao desenvolvimento sustentรกvel e duradouro, sem fome, menos violento, e garantidor da dignidade humana.

*O autor รฉ engenheiro com especializaรงรฃo nas รกreas de macroeconomia, administraรงรฃo de empresas e finanรงas, empresรกrio, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros โ€œBrasil, um paรญs ร  derivaโ€ e โ€œCaminhos para um paรญs sem rumoโ€. Site: https://samuelhanan.com.br

Foto: Tomaz Silva/Agรชncia Brasil