Esta semana, vi um vídeo de um militante de extrema direita no qual ele afirmava, sem pudor, que a abolição da escravatura, por meio da Lei Áurea, foi um grande erro. O militante revisionista apresenta uma leitura anacrônica e distorcida do sistema escravocrata que perdurou no Brasil por cerca de 350 anos.
O vídeo é de causar náuseas. Contudo, é bastante didático para entendermos a ameaça que posturas revisionistas representam para a democracia e para a civilização como um todo. Conforme algumas definições da web, revisionismo significa reanalisar algo, reinterpretar fatos históricos com o intuito de distorcê-los.
Na verdade, trata-se de manipulação da informação sem qualquer compromisso ético, moral, teórico ou metodológico. O objetivo é sempre apresentar “novas versões” de fatos históricos que envolvem a ciência, a política, a economia, dentre outros campos do saber.
Paradigmas
Certamente, a História, assim como todas as demais ciências, está sempre em processo de evolução. A produção de novos conhecimentos que, no devido tempo e dentro de uma metodologia específica, superam conhecimentos outrora vigentes fazem parte do processo científico. Thomas Kuhn explora isso com maestria no texto A Estrutura das Revoluções Científicas (1962).
Para ilustrar, podemos citar, como exemplo, o geocentrismo e o heliocentrismo. Noutras palavras, o modelo ptolomaico foi substituído pelo modelo copernicano, fato que resultou em uma revolução científica genuína. Contudo, o revisionismo não se relaciona com o abandono de determinado paradigma e a adoção de outro, como descrito por Kuhn.
O revisionismo, ao contrário, não busca a evolução ou revolução científica, mas a involução. Trata-se de uma tentativa deliberada de deslegitimar o conhecimento científico produzido e acumulado ao longo de décadas ou séculos.
Negacionismo
Nesse sentido, o revisionismo é também uma forma de negacionismo. Sob a falsa premissa de que apresentam “novas pesquisas” ou “novas descobertas”, seus adeptos retomam temas que já foram superados pela ciência, tais como: a forma da terra, a eficácia das vacinas, a pseudociência da eugenia etc.
Assim, o revisionismo constitui-se em uma ameaça à civilização. Quando classifico posturas revisionistas como ameaças refiro-me ao retorno, à legitimação e à naturalização de atrocidades e barbáries, como genocídios, escravidão e racismo, pedofilia, totalitarismo etc. Esses temas já foram consensuados pela sociedade, ao menos pela sua maioria, como coisas que devem ser evitadas e combatidas.
Portanto, ao afirmar publicamente que a Lei Áurea foi um erro porque eliminou o direito de propriedade dos senhores de escravos, trazendo insegurança jurídica ao país, o militante de extrema direita contextualiza de forma indevida, incorreta e injusta um período trágico da nossa história.
O mesmo ocorre com os que defendem a Ditadura Militar de 1964, que conceituam os vinte anos de autoritarismo no Brasil como “períodos de ordem”. Na prática, isso significa validar o autoritarismo e legitimar práticas opressivas.
Conclusão
Estamos diante de uma grande ameaça. Há um nível crescente de organização e financiamento para programas e plataformas que produzem conteúdos marcadamente revisionistas. Em tempo de comunicação digital, tais conteúdos se espalham velozmente, como rastilho de pólvora.
As redes sociais e os algoritmos funcionam como canais amplificadores da desinformação, divulgando “novas descobertas” ou “interpretações alternativas”. O efeito prático disso é o fortalecimento do revisionismo e do negacionismo, bem como o enfraquecimento da confiança na ciência e mesmo no jornalismo investigativo.
É importante ressaltar que a sociedade só avança quando se baseia em uma compreensão honesta do passado. Cabe aos educadores, intelectuais e cidadãos comprometidos com o bem comum resistir às tentativas de deturpação da história e garantir que os fatos sejam respeitados e preservados.
Ademais, a história é o alicerce da identidade coletiva de uma nação. Ela oferece lições importantes para que erros do passado não sejam repetidos. Não podemos aceitar, passivamente, que certos grupos reescrevam, sem qualquer base, suas versões particulares de acontecimentos históricos apenas para sustentar suas ideologias nefastas.
É necessário um combate intelectual e político contra esses grupos. Por fim, é fundamental defender a ciência, a verdade histórica, não apenas por meio do trabalho intelectual, mas também utilizando as instituições e ferramentas jurídicas que estiverem disponíveis.
O revisionista do podcast é um neonazista. Ele é uma ameaça à democracia e ao processo civilizatório.
*O autor é sociólogo.
Ilustração: Gilmal