O historiador e sociólogo brasileiro Sérgio Buarque de Holanda, no clássico Raízes do Brasil , afirma que, diferentemente do “zelo minucioso e previdente que dirigiu a fundação das cidades espanholas na América”, as cidades fundadas pelos portugueses foram pensadas com base em um enorme desleixo.
Sérgio Buarque afirma que “a cidade que os portugueses construíram na América não é produto mental […]”. Segundo ele, não houve “nenhum rigor, nenhum método, nenhuma previdência, sempre esse significativo abandono que exprime a palavra desleixo”.
A cidade de Manaus, seguindo a tradição portuguesa, não goza de quase nenhum planejamento urbano desde a sua fundação. O seu centro histórico possui uma arquitetura comprimida e sem grandes espaços para a circulação de pessoas, muito diferente das capitais dos países colonizados pelos espanhóis, como Assunção e Lima, que possuem enormes praças com seus traços retilíneos em seu centro histórico.
Fiz esta breve contextualização para falar que em uma cidade que não possui, em sua arquitetura e planejamento urbano, amplos espaços de circulação e lazer gerados pelo poder público, os moradores irão criar os seus próprios espaços. Assim, apropriando-se de áreas que possibilitem momentos de lazer.
Tarumã
Este é o caso dos flutuantes que estão fundeados no Rio Tarumã, em Manaus. Estes passaram a existir e a se proliferar a partir de uma demanda de lazer da população. Essas estruturas se transformaram em espaços de diversão a preços relativamente acessíveis para o conjunto da população manauara.
Trata-se de algo legítimo, afinal, todos devem ter o direito ao lazer garantido pelo poder público. Ainda mais se tratando de uma cidade que é “assassina” de igarapés, espaços que outrora eram usados com frequência pela população para diversão nos finais de semana.
Neste âmbito, é preciso que o poder público estadual e o municipal discutam ampla e democraticamente com a sociedade sobre o tema dos flutuantes instalados ao longo do Rio Tarumã. A retirada dessas estruturas não pode ser feita de forma unilateral, via decreto. Um procedimento assim seria o cerceamento do direto do manauara ao lazer dentro do perímetro de sua própria cidade.
Limpeza social
Ademais, não se pode aceitar que, sob o manto sagrado da questão ambiental, seja feita uma espécie de “limpeza social” daquela área. Todos sabem que o Tarumã fica localizado na região da cidade onde os ricos endinheirados moram. É por lá que ficam as marinas que hospedam lanchas e iates milionários.
Em tempo, o equacionamento da questão ambiental é atribuição do poder público. Este deve buscar uma solução (e tem) para a questão do uso da água e do tratamento do esgoto dos flutuantes. O que não pode é impedir os donos dos flutuantes de trabalhar, tampouco privar os trabalhadores manauaras do direito ao lazer em sua cidade.
Esta questão é interessante, pois, de modo geral, o brasileiro não tem acesso qualitativo à cidade. Desde a colonização, como aponta Sérgio Buarque, as cidades sempre foram construídas de forma a promover a exclusão social e econômica, impulsionando desta forma um verdadeiro apartheid no perímetro urbano. Em Manaus, isto não é diferente.
Assim sendo, concluo, afirmando que os flutuantes alocados no Rio Tarumã representam a democratização dos espaços naturais de lazer e entretenimento da cidade. Eles democratizam também o acesso ao rio, algo que é uma necessidade da alma amazonense. Sem o rio, nós morremos material e simbolicamente.
Sociólogo
Arte: Gilmal