Marcelo Ramos pede punição a Eduardo Bolsonaro por cultuar ditadura
O Psol, Rede e PCdoB já acionaram o Conselho de Ética da Casa pedindo abertura de processo contra o deputado por quebra de decoro parlamentar

Diamantino Junior
Publicado em: 05/04/2022 às 17:25 | Atualizado em: 05/04/2022 às 17:25
O vice-presidente da Câmara dos Deputados, Marcelo Ramos (PSD), pediu, nesta terça-feira (5), que o deputado Eduardo Bolsonaro (PL-SP) seja responsabilizado por cultuar a tortura e a ditadura.
“Ditadura não existe com um parlamento aberto e livre”, disse Ramos, que leu no plenário o depoimento da jornalista Miriam Leitão (leia abaixo), vítima de deboche do deputado, que é filho do presidente Jair Bolsonaro.
A chacota foi motivada pela divulgação de um artigo escrito pela jornalista no último domingo (03), em O Globo, no qual ela diz que Bolsonaro é inimigo confesso da democracia.
Como resposta, o filho do presidente escreveu: “Ainda com pena da cobra”. Em 1972, quando foi presa, Miriam estava grávida e foi covardemente torturada por militares, que a deixaram num local escuro com uma jiboia.
Leia mais
Eduardo Bolsonaro pede ‘prova documental’ da tortura de Miriam Leitão
O Psol, Rede e PCdoB já acionaram o Conselho de Ética da Casa pedindo abertura de processo contra o deputado por quebra de decoro parlamentar.
O filho do presidente voltou a se manifestar nas redes sociais sobre o assunto: “Me odeiam, desejam a morte de minha família e agora pedem respeito e querem minha cassação por eu ter feito uma piada.”
“A verdade é que o povo já não conhece mais a verdade pelos olhos das Globo. Daí meus inimigos apelarem para o tapetão”, escreveu no Twitter.
Solidariedade
Ramos prestou solidariedade a Miriam Leitão que, na sua opinião, foi vítima de um ataque covarde por parte do deputado. “Esses canalhas passarão. Ditadura nunca mais!”, repudiou.
E prosseguiu: “O deputado precisa ser responsabilizado, porque não cabe a um parlamentar cultuar o que é o fim do funcionamento desta Casa, porque a tortura é ditadura, e ditadura não existe com um parlamento aberto e livre.”
Para Ramos, o que está em jogo no episódio não é ser de direita ou de esquerda. “O que está em jogo aqui é o que eu vou dizer para os meus filhos quando eu voltar para casa e eles me perguntarem sobre violência, sobre tortura, sobre democracia e sobre ditadura”, explicou.
“Esta não é uma casa que tolera quem cultua, quem ironiza a tortura. Esta é a casa de Ulysses Guimarães. Esta é a casa que tem amor à democracia e ódio à tortura. Ditadura nunca mais!”, concluiu.
Depoimento de Miriam Leitão:
Fui levada para uma grande sala vazia, sem móveis, com as janelas cobertas por um plástico preto. Com a luz acesa na sala, vi um pequeno palco elevado, onde me colocaram de pé e me mandaram não recostar na parede. Chegaram três homens à paisana, um com muito cabelo, preto e liso, um outro ruivo e um descendente de japonês. Mandaram eu tirar a roupa. Uma peça a cada cinco minutos. Tirei o chinelo. O de cabelo preto me bateu:
– A roupa! Tire toda a roupa.
Fui tirando, constrangida, cada peça. Quando estava nua, eles mandaram entrar uns 10 soldados na sala. Eu tentava esconder minha nudez com as mãos. O homem de cabelo preto falou:
– Posso dizer a todos eles para irem pra cima de você, menina. E aqui não tem volta. Quando começamos, vamos até o fim.
Eles saíram e o homem de cabelo preto, que alguém chamou de Dr. Pablo, voltou trazendo uma cobra grande, assustadora, que ele botou no chão da sala, e antes que eu a visse direito apagaram a luz, saíram e me deixaram ali, sozinha com a cobra. Eu não conseguia ver nada, estava tudo escuro, mas sabia que a cobra estava lá. A única coisa que lembrei naquele momento de pavor é que cobra é atraída pelo movimento. Então, fiquei estática, silenciosa, mal respirando, tremendo. Era dezembro, um verão quente em Vitória, mas eu tremia toda. Não era de frio. Era um tremor que vem de dentro. Ainda agora, quando falo nisso, o tremor volta. Tinha medo da cobra que não via, mas que era minha única companhia naquela sala sinistra. A escuridão, o longo tempo de espera, ficar de pé sem recostar em nada, tudo aumentava o sofrimento. Meu corpo doía.
Não sei quanto tempo durou esta agonia. Foram horas. Eu não tinha noção de dia ou noite na sala escurecida pelo plástico preto. E eu ali, sozinha, nua. Só eu e a cobra. Eu e o medo. O medo era ainda maior porque não via nada, mas sabia que a cobra estava ali, por perto. Não sabia se estava se movendo, se estava parada. Eu não ouvia nada, não via nada. Não era possível nem chorar, poderia atrair a cobra. Passei o resto da vida lembrando dessa sala de um quartel do Exército brasileiro. Lembro que quando aqueles três homens voltaram, davam gargalhadas, riam da situação. Eu pensava que era só sadismo. Não sabia que na tortura brasileira havia uma cobra, uma jiboia usada para aterrorizar e que além de tudo tinha o apelido de Míriam. Nem sei se era a mesma. Se era, talvez fosse esse o motivo de tanto riso. Míriam e Míriam, juntas na mesma sala. Essa era a graça, imagino. (…)
Fiquei 48 horas sem comer. Eu entrei no quartel com 50 kg de peso, saí três meses depois pesando 39 kg. Eu cheguei lá com um mês de gravidez, e tinha enormes chances de perder meu bebê. Foi o que o médico me disse, quando saí de lá, com quatro meses de gestação. Eu estava deprimida, mal alimentada, tensa, assustada, anêmica, com carência aguda de vitamina D por falta de sol. Nada que uma mulher deve ser para proteger seu bebê na barriga. Se meu filho sobrevivesse, teria sequelas, me disse o médico. (…)
Um dia, um outro militar, que não era nenhum daqueles três, botou um revólver na minha cabeça e falou: “Eu posso te matar”. E forçou aquele cano frio na minha testa. Me deu um sentimento enorme de solidão, de abandono. Eu me senti absolutamente só no mundo. Pela falta de notícias, imaginava que o Marcelo estava morto. Entendi que iria morrer também e que ninguém saberia da minha morte, pensei. Mas não quis demonstrar medo. Lembro que o homem do revólver tinha olhos azuis. Olhei nos seus olhos e respondi: “Sim, você pode pode me matar”. E repeti, falando ainda mais alto, com ar de desafio: “Sim, você pode!” (…)
Eu estava com um mês de gravidez, e disse isso a eles. Não adiantou. Ignoraram a revelação e minha condição de grávida não aliviou minha condição lá dentro. Minha cabeça doía, com a pancada na parede, e o sangue coagulado na nuca incomodava. Eu não podia me lavar, não tinha nem roupa para trocar. Quando pensava em descansar e dormir um pouco, à noite, o lugar onde estava de repente era invadido, aos gritos, com um bando de pastores alemães latindo na minha cara. Não mordiam, mas pareciam que iam me estraçalhar, se escapassem da coleira. E, para enfurecer ainda mais os cães, os soldados gritavam a palavra que enlouquecia a cachorrada: “Terrorista, terrorista!…” (…)
Sobrevivi e meu filho Vladimir nasceu em agosto forte e saudável, sem qualquer sequela. Ele me deu duas netas, Manuela (3 anos) e Isabel (1). Do meu filho caçula, Matheus, ganhei outros dois netos, Mariana (8) e Daniel (4). Eles são o meu maior patrimônio.
Minha vingança foi sobreviver e vencer. Por meus filhos e netos, ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas. Não cultivo nenhum ódio. Não sinto nada disso. Mas, esse gesto me daria segurança no futuro democrático do país.
Foto: Paulo Sergio/Câmara dos Deputados