É bem difundida a ideia de que o contato com a natureza traz benefícios à saúde física e mental das pessoas.
O termo “natureza”, nesse caso, refere-se a áreas verdes de modo geral, sejam parques urbanos ou grandes áreas que preservam extensas vegetações nativas.
Eu compartilho dessa sensação maravilhosa de bem-estar que esses ambientes naturais provocam, mas fiquei impressionada com a seguinte informação de uma pesquisa científica na área de saúde pública, que li há uns anos: “viver a menos de 500 metros de um parque reduz em quase 30% o risco de enfarte cerebral ou enfarte do miocárdio”.
Mais do que uma sensação de bem-estar, o simples fato de viver próximo a uma área verde traz benefícios significativos à saúde, mesmo que a pessoa não goste ou não frequente esses espaços.
A realidade atual de boa parte das cidades brasileiras mostra que nossa história urbanística seguiu justamente o caminho oposto: suprimir a vegetação nativa, tanto nas cidades quanto nos ambientes rurais, em prol do desenvolvimento econômico.
Essa visão dicotômica entre ambiente urbano e natureza é reflexo de uma perspectiva eurocêntrica e colonialista sobre os ambientes naturais.
Ela coloca as florestas tropicais – que ocupavam originalmente a maior extensão de área do nosso país na época da ocupação portuguesa – como ambientes naturais intocados, puros e selvagens a tal ponto de serem considerados dissociados da civilização humana e do desenvolvimento.
Os parques nacionais
A partir de uma postura colonizada, também importamos dos Estados Unidos a política de criação de grandes parques nacionais públicos como estratégia para preservar grandes belezas cênicas, reforçando, mais uma vez, a ideia de que a natureza está dissociada da sociedade, de que a natureza intocada deve estar protegida das pessoas.
Por um lado, não resta dúvida de que a criação de parques nacionais ou de outras modalidades de áreas públicas protegidas constitui uma estratégia efetiva para a conservação de grandes áreas de vegetação nativa.
Basta viajar pelo Brasil para testemunhar que tais áreas protegidas são verdadeiros oásis em meio a extensas áreas de pastagem, monocultura e grandes áreas urbanizadas.
Os contrastes que mais me marcaram em minhas viagens foram o Parque Nacional das Emas, em Goiás, e o Parque Estadual do Morro do Diabo, em São Paulo. Esses parques são verdadeiras ilhas de natureza preservada.
Por outro lado, a criação de alguns parques nacionais resultou em conflitos e, eventualmente, em deslocamentos forçados das populações que viviam ancestralmente nessas áreas. Esses conflitos ocorrem porque esses parques são categorizados como unidades de conservação de proteção integral, portanto, herdeiros da ideia de “natureza intocada”, segundo a qual a natureza só será plenamente preservada se for totalmente isolada dos seres humanos.
Todavia, conforme definido por Antônio Carlos Diegues no texto “O mito moderno da natureza intocada” (1996), a ideia de que as florestas constituem uma natureza pura e intocada é um mito.
Ele afirma que essa noção “diz respeito a uma representação simbólica pela qual existiriam áreas naturais intocadas e intocáveis pelo homem, apresentando componentes num estado ‘puro’ até anterior ao aparecimento do homem”.
Diegues prossegue, citando Eilen (1989), e aponta que “a natureza em estado puro não existe, e as regiões naturais apontadas pelos biogeógrafos usualmente correspondem a áreas extensivamente manipuladas pelos homens”.
Povos e floresta
A partir da definição de Diegues (1996), lancemos nosso olhar para a exuberante floresta amazônica.
Em comparação com as florestas brasileiras, ela é a menos devastada, apesar do avanço em seu desmatamento nos últimos anos. Entretanto, mesmo com toda a importância biossociocultural, o bioma Amazônia ainda é pouco conhecido pelos brasileiros.
No que tange à sua diversidade biológica e cultural, trata-se de um processo milenar de formação, de conjugação de fatores ecológicos e humanos.
Sabe-se, a partir de estudos arqueológicos, antropológicos e históricos, que uma miríade de povos habitava a floresta amazônica antes da invasão europeia.
A partir da colonização, em menos de um século, centenas de etnias foram extintas. Nações inteiras foram dizimadas pela força do arcabuz e das doenças infectocontagiosas desde a primeira expedição europeia pelo rio Amazonas, em 1541.
Apesar do contínuo genocídio, os povos indígenas, os que sobraram, resistem bravamente. E o avanço das pesquisas traz muitas evidências de que a floresta amazônica que vemos hoje, exuberante e complexa, é resultado das ações desses povos.
Trata-se de um legado ecológico e cultural deixado por sociedades amplas e complexas que viveram na e da floresta por cerca de 12.000 anos até a ocupação portuguesa.
Nesse sentido, é possível deduzir que o nível de associação entre os povos ancestrais e a floresta era tão significativo que as ações deles, efetivamente, moldaram a floresta como a vemos hoje.
Essas evidências científicas confirmam que, de fato, é um mito pensar na floresta amazônica como uma vegetação pristina, intocada, que precisa ser integralmente protegida das ações humanas.
Mesmo na atualidade, milhares de famílias indígenas e não indígenas que vivem em ambientes rurais e periurbanos na região amazônica obtêm sua renda da combinação de atividades agrícolas e extrativismo de produtos da floresta.
Da mesma forma, as populações que habitam as terras indígenas (TI), as que habitam em projetos de assentamento agroextrativistas, em reservas extrativistas – essas últimas constituem um modelo de unidade de conservação que alia preservação da floresta com a utilização da mesma pelas populações – todos se utilizam da floresta para viver.
Essas formas de ocupação citadas que, ao mesmo tempo, exploram e protegem a floresta, são estratégias que se utilizam do conceito que apresentei acima de que as florestas evoluíram com a presença humana, hoje tão bem suportado por fortes evidências científicas.
Conclusão
Um modelo viável para a conservação da floresta amazônica, seus povos e seus modos de vida consiste na formação de mosaicos de áreas protegidas.
Esses mosaicos devem integrar, além dos parques de proteção integral e das terras indígenas, diferentes categorias de áreas protegidas e outras formas de uso da terra.
Deve-se assegurar a conservação da floresta enquanto se permite a ocupação e a exploração extrativista pelas populações locais.
A cada dia constatamos os impactos cada vez mais intensos do desmatamento em nosso cotidiano.
Cientistas têm apresentado evidências sólidas de que a conservação da floresta amazônica é uma estratégia fundamental para o equilíbrio hídrico e climático em todo o continente.
Diante disso, o Brasil precisa não apenas cessar o desmatamento, mas também recompor grande parte do que já foi desmatado.
Por fim, o seguinte questionamento: para garantir a sobrevivência dos brasileiros e brasileiras de hoje e das futuras gerações, de quem devemos proteger a floresta amazônica?
Para mim, a resposta é clara: devemos protegê-la do modelo de desenvolvimento econômico capitalista e imperialista que herdamos dos colonizadores europeus há mais de 500 anos e que, infelizmente, ainda seguimos aplicando tanto na Amazônia quanto no restante do país.
Trata-se de um modelo de desenvolvimento mimético que continua a tratar as florestas como obstáculos e não como aliadas do desenvolvimento e da sociedade.
*A autora é doutora em agronomia.
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