CoronavĂrus leva mĂ£e e avĂ´ e ameaças fazem irmĂ£s deixar cidade
Jovens deixaram a cidade em que nasceram para buscar um pouco de paz, em meio Ă maior tragĂ©dia da famĂlia, causada pela pandemia

Publicado em: 23/06/2020 Ă s 13:50 | Atualizado em: 23/06/2020 Ă s 13:54
Em 11 de junho, as irmĂ£s Dalylla Lopes, de 27 anos, Talytta, 22, e Samylla, 21, se mudaram de Alto Araguaia, cidade mato-grossense localizada na divisa com GoiĂ¡s.
Elas afirmam que deixaram a cidade em que nasceram para buscar um pouco de paz, em meio Ă maior tragĂ©dia da famĂlia, causada pelo novo coronavĂrus.
Seis dias antes, a mĂ£e delas, LĂgia Suely Lopes, de 42 anos, morreu em decorrĂªncia da covid-19.
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No fim de maio, as irmĂ£s haviam perdido o avĂ´ materno, Joaquim de Oliveira, de 74 anos, para a mesma doença.
“Tem sido o perĂodo mais difĂcil das nossas vidas”, resume Dalylla Ă BBC News Brasil.
Ela contraiu a covid-19 e se recuperou, assim como outros quatro familiares.
Os casos na famĂlia foram os primeiros diagnĂ³sticos de covid-19 no municĂpio de 17,5 mil habitantes.
Atualmente, mais de um mĂªs depois, Alto Araguaia tem 23 casos confirmados e trĂªs mortes, incluindo as de LĂgia e Joaquim.
Em meio Ă doença causada pelo novo coronavĂrus, a famĂlia passou a receber comentĂ¡rios e acusações nas redes sociais.
“Disseram que fomos as responsĂ¡veis por levar o vĂrus para a nossa cidade. Recebemos muitas crĂticas. Isso tudo Ă© muito triste”, comenta Dalylla.
As irmĂ£s relatam que as diversas crĂticas que recebem tĂªm tornado o atual perĂodo ainda mais difĂcil.
“Estamos vivendo Ă base de remĂ©dios para dormir. A nossa vida nunca vai ser a mesma. AlĂ©m das perdas, precisamos lidar com a falta de empatia das pessoas. Toda hora recebemos algum comentĂ¡rio maldoso nas redes sociais”, lamenta Talytta.
O primeiro caso confirmado em Alto Araguaia
As irmĂ£s contam que a tragĂ©dia teve inĂcio apĂ³s a primeira semana de maio, depois que Dalylla visitou uma amiga, em uma cidade vizinha.
“Foi uma infelicidade muito grande. Eu estava de folga e decidi encontrĂ¡-la”, conta Dalylla.
No começo de maio, o paĂs jĂ¡ enfrentava crescimento exponencial de casos e mortes e uma das principais orientações era o isolamento social.
Mas Dalylla admite que nĂ£o acreditava que poderia contrair o vĂrus no encontro com a amiga, pois nĂ£o havia nenhum registro na regiĂ£o.
Ela comenta que foi à casa da amiga junto com o filho caçula, de nove meses.
“NĂ£o era um churrasco ou uma festa. Era apenas um encontro de amigas”, argumenta.
No local, também havia uma outra mulher.
“Ela era colega da minha amiga e tinha acabado de chegar do Sul do paĂs. Ela deveria estar em quarentena, porque tinha voltado de viagem, mas estava lĂ¡.”
“Essa conhecida brincou com o meu filho durante o encontro. Pode ser que nesse momento ela tenha passado o vĂrus para ele”, diz Dalylla.
Dias depois, segundo Dalylla, a conhecida testou positivo para a covid-19.
Foi o primeiro caso confirmado na cidade vizinha.
Sintomas dias depois
Dalylla e o filho começaram a apresentar sintomas da covid-19.
“Tivemos febre e tosse, mas a princĂpio nĂ£o demos importĂ¢ncia. Passamos a desconfiar que poderia ser covid-19 quando descobrimos que a mulher que havia testado positivo na cidade vizinha era aquela que esteve junto comigo e com a minha amiga”, relata.
A mĂ£e, os avĂ³s e a irmĂ£ do meio, Talytta, tambĂ©m apresentaram sintomas.
A irmĂ£ caçula, Samylla, e os dois filhos mais velhos de Dalylla nĂ£o tiveram sintomas.
Os testes confirmaram que Dalylla e o caçula haviam sido infectados pelo novo coronavĂrus.
“Desde os primeiros sintomas, ficamos em isolamento e comunicamos a todos que tivemos contato naqueles Ăºltimos dias. Como a minha mĂ£e era da Ă¡rea da saĂºde, ela era muito preocupada com isso”, comenta Samylla.
Os principais sintomas de Dalylla foram a falta de ar e a tosse.
“Eu fiquei muito mal, mas nĂ£o cheguei a ser internada. Tive muito cansaço e dor de cabeça”, relembra.
“Quando eu respirava, parecia que havia agulhas nos meus pulmões, porque doĂa muito”, diz Talytta.
As duas foram tratadas em casa, com o intenso apoio da mĂ£e.
LĂgia era considerada pelas filhas como uma fortaleza.
Ela era tĂ©cnica de enfermagem, mas hĂ¡ alguns anos havia deixado a funĂ§Ă£o para trabalhar em uma associaĂ§Ă£o comercial de Alto Araguaia.
“A minha mĂ£e sempre foi guerreira e muito protetora. No perĂodo da covid, ela nĂ£o se deixava abater. Estava sempre ajudando a gente”, diz Talytta.
MĂ£e escondeu sintomas
Em um Ă¡udio para uma parente, LĂgia desabafou.
Ela disse que dormia pouco e parecia viver um pesadelo em razĂ£o do coronavĂrus.
No relato, contou que sentia dores por todo o corpo, mas precisava se manter forte, para nĂ£o desmotivar as filhas e os pais.
O primeiro familiar a apresentar quadro grave foi o idoso Joaquim de Oliveira.
DiabĂ©tico, hipertenso, com problemas cardĂacos e nos rins, ele teve intensa falta de ar, febre e foi levado ao hospital.
Joaquim foi intubado, mas nĂ£o resistiu.
Ele faleceu em 26 de maio.
LĂgia nunca soube da morte do pai
Ela foi internada no dia em que o idoso faleceu.
Extremamente apegada a ele, os familiares optaram por contar sobre o falecimento somente quando ela melhorasse, para nĂ£o prejudicar a recuperaĂ§Ă£o dela.
PorĂ©m, o quadro de saĂºde dela, que era hipertensa e tinha bronquite, se agravou cada vez mais.
“A minha mĂ£e começou a ficar debilitada assim que meu avĂ´ piorou. Ela ficou abatida, porque sabia que meu avĂ´ nĂ£o sobreviveria. Foi um choque para ela nĂ£o poder fazer nada por ele”, diz Samylla.
“Ela deu a vida por nĂ³s. NĂ£o caiu em nenhum momento, enquanto a gente estava ruim”, relembra Talytta.
Um dos temores da tĂ©cnica de enfermagem, durante a internaĂ§Ă£o, era ser intubada.
No entanto, diante da intensa falta de ar, nĂ£o restou alternativa aos mĂ©dicos.
LĂgia foi encaminhada para um hospital em RondonĂ³polis (MT).
Em 5 de junho, ela nĂ£o resistiu Ă s consequĂªncias do coronavĂrus.
“Ela era muito forte. Sempre foi uma guerreira. A gente tinha certeza de que a minha mĂ£e sobreviveria, por isso nĂ£o nos despedimos dela antes da internaĂ§Ă£o. Foi tudo muito triste”, emociona-se Samylla.
‘Me sinto culpada’
Ao comentar sobre as mortes do avĂ´ e da mĂ£e, Dalylla admite que se sente culpada.
“É um culpa que vou ter sempre comigo, porque eu fui Ă casa da minha amiga aquele dia. Me sinto culpada porque isso custou a vida do meu avĂ´ e da minha mĂ£e. Me sinto culpada por estar viva. É uma sensaĂ§Ă£o muito ruim”, relata, aos prantos.
“Eu sei que nĂ£o fiz por querer. NĂ£o fui para uma festa ou para um churrasco, como vejo muitas pessoas fazendo com frequĂªncia. Mas eu nĂ£o deveria ter saĂdo aquele dia. A minha cabeça estĂ¡ bagunçada. Eu fiquei ruim e me recuperei. Mas o meu avĂ´ nĂ£o conseguiu se recuperar. A minha mĂ£e, que cuidou de todos nĂ³s, tambĂ©m nĂ£o. É muito difĂcil”, diz Dalylla, em meio Ă s lĂ¡grimas.
Um pedido de desculpas marcou a Ăºltima conversa entre Dalylla e o avĂ´, pouco antes de o idoso ser internado com a covid-19.
“Queria que ele me perdoasse. Precisava muito do perdĂ£o dele”, comenta.
“Ele me disse que eu nĂ£o precisava me desculpar, porque nĂ£o era culpa minha e todo mundo poderia pegar esse vĂrus em algum momento”, relata Dalylla.
Ela afirma que tambĂ©m queria pedir perdĂ£o para a mĂ£e.
“Mas nĂ£o deu tempo. Ela foi levada para outra cidade. A gente pensava que ela logo melhoraria, mas nunca mais voltou”, lamenta Dalylla.
Dor de nĂ£o se despedir
LĂgia foi enterrada em caixĂ£o lacrado e com uma breve cerimĂ´nia de despedida.
Durante o ato, Talytta se desesperou, se jogou no chĂ£o e pediu desculpas Ă mĂ£e.
“Pelo amor de Deus, me perdoa. Volta para mim, pelo amor de Deus. Me perdoa. Volta, mĂ£e. VocĂª Ă© a razĂ£o do meu viver. Respira, mĂ£e. Levanta, mĂ£e!”, bradou a jovem, em meio aos soluços, enquanto LĂgia era enterrada.
Pedido de perdĂ£o
Em conversa com a BBC News Brasil, Talytta explica que pediu desculpas por “todas as vezes que errou com a mĂ£e”.
“Filho Ă s vezes nĂ£o ouve os pais. TambĂ©m me desculpei por estar longe nos Ăºltimos meses”, comenta Talytta, que estudava Medicina na BolĂvia e havia retornado para Alto Araguaia em maio, em razĂ£o da pandemia do novo coronavĂrus.
O desespero de Talytta foi registrado pelo pai dela em uma sequĂªncia de vĂdeos que ele fez durante a cerimĂ´nia de despedida da ex-esposa, para compartilhar com os parentes que nĂ£o puderam ir ao local — os velĂ³rios para vĂtimas de covid-19 sĂ£o limitados para evitar aglomerações.
“Ele colocou os vĂdeos em um grupo da famĂlia, para os parentes que nĂ£o conseguiram se despedir da minha mĂ£e, porque ela era muito querida. Logo as imagens foram compartilhadas para outras pessoas e começaram a dizer que eu estava chorando por ter passado o vĂrus para ela”, diz Talytta.
O vĂdeo viralizou.
Diversas publicações afirmaram que se tratava de uma filha arrependida por ter infectado a mĂ£e com o novo coronavĂrus, apĂ³s ir a diversas festas.
“Começaram a ofender e criticar muito a gente. Isso Ă© horrĂvel. NĂ£o desejo para ninguĂ©m. Estamos sendo ofendidas em todos os lugares. As pessoas falam sem saber. Isso Ă© desumano”, diz Talytta.
“Eu jĂ¡ me sinto muito culpada pelo que aconteceu e agora ainda culpam a minha irmĂ£. NĂ£o estĂ£o querendo respeitar a nossa dor. EstĂ¡ doendo demais tudo isso”, afirma Dalylla.
Elas afirmam que planejam processar os responsĂ¡veis por compartilhar ofensas contra elas nas redes sociais.
“As pessoas nĂ£o podem fazer isso com as outras e saĂrem impunes. Isso Ă© muito sĂ©rio”, diz Talytta.
A mudança
As irmĂ£s contam que passaram a receber diversas crĂticas em Alto Araguaia, desde que foram os primeiros casos confirmados.
ApĂ³s a morte do avĂ´ e da mĂ£e, elas contam que a situaĂ§Ă£o piorou.
“Falta muita empatia. Aquela cidade, infelizmente, se tornou um peso para a gente. As pessoas nos olhavam com muito preconceito por lĂ¡, como se a gente tivesse culpa de cada caso de Covid-19. Mas nĂ³s nos isolamos logo no começo e informamos as pessoas com quem tivemos contato”, diz Talytta.
“HĂ¡ uma rodovia movimentada que passa pela cidade, a BR-364, e por isso sempre hĂ¡ gente de outros lugares por ali. Hoje, jĂ¡ existem pessoas contaminadas que nunca tiveram contato com a gente. Mas ainda assim, pensam que somos as Ăºnicas responsĂ¡veis pelo vĂrus por lĂ¡”, afirma Talytta.
Assim como as irmĂ£s, Ă© comum que os primeiros diagnĂ³sticos em determinadas localidades sejam apontados por moradores como os responsĂ¡veis por levar o vĂrus para uma regiĂ£o.
PorĂ©m, estudos sobre o novo coronavĂrus apontam que Ă© difĂcil definir o primeiro caso em um lugar. Isso porque pode haver, por exemplo, pessoas com sintomas leves que transmitem o vĂrus, mas nĂ£o procuram ajuda mĂ©dica por acreditar que se trata de um resfriado comum.
Desta forma, nĂ£o entram para as estatĂsticas sobre a covid-19.
Depois da morte da mĂ£e e do avĂ´, as irmĂ£s, que moravam em uma casa alugada em Alto Araguaia, decidiram se mudar. Com a avĂ³, de 68 anos, que tambĂ©m teve a Covid-19 e conseguiu se recuperar, elas se mudaram para um municĂpio em um Estado vizinho.
Na nova cidade, tentam pensar sobre o futuro. Dalylla e Samylla abandonaram os empregos em Alto Araguaia. Talytta nĂ£o quer retornar para a BolĂvia.
“Quero ficar por aqui para cuidar das minhas irmĂ£s e minha avĂ³. Penso em cursar Medicina ou Enfermagem, em homenagem Ă minha mĂ£e”, comenta Talytta. “Talvez eu faça odontologia, porque trabalhava como auxiliar de dentista”, diz Samylla.
Dalylla admite ter dificuldades para pensar sobre o futuro.
“NĂ£o consigo fazer planos. Parece ainda que eu estou em um pesadelo e a qualquer momento a minha mĂ£e vai voltar com aquele sorrisĂ£o dela e dizer que estĂ¡ tudo bem. Estou suportando tudo isso graças aos meus filhos, que dependem de mim”, diz.
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Foto: Arquivo pessoal