Um ano após a covid-19 instalar no país a crise sanitária que já custou as vidas de mais de 310 mil brasileiros, prefeitos de grandes e pequenos municípios ainda se mantêm na contramão da ciência enquanto distribuem medicamentos sem eficácia comprovada às populações como forma de tentar combater a doença.
Esses gestores replicam o discurso adotado pelo governo de Jair Bolsonaro ao longo de todo o ano passado e dos últimos meses, antes da guinada recente do presidente em defesa da campanha de vacinação.
Localmente, prefeituras seguem entregando a munícipes o chamado “Kit Covid”, formado geralmente por medicamentos como ivermectina (indicado contra parasitas como os piolhos), hidroxocloroquina e azitromicina, além de vitaminas variadas — que já foram foco de inúmeros estudos que as descartam como eficientes diante do coronavírus.
Em Natal, centro da região metropolitana considerada o epicentro da Covid-19 no Rio Grande do Norte, o prefeito Álvaro Dias (PSDB) é defensor da ivermectina e protagoniza uma queda de braço com a governadora Fátima Bezerra (PT).
Enquanto ela endureceu restrições para conter a doença no estado, ele afrouxou as normas na capital: ampliou o horário de funcionamento do comércio e recomendou mais uma vez, de maneira oficial, os tratamentos sem eficácia.
“Fica recomendada a realização da quimioprofilaxia terapêutica ou preventiva da população, assegurado ao profissional médico a liberdade de prescrição pré-hospitalar dos medicamentos que ele entender como eficazes”, definiu Dias em decreto do dia 6 de março.
Médico pediatra, o tucano defende a ivermectina há meses e, em fevereiro, declarou que o remédio é “extremamente necessário e benéfico para evitar a disseminação da doença e ajudar a reduzir a carga viral”.
O texto, disponibilizado on-line pela prefeitura de Natal, não tem base científica.
Ao GLOBO, a administração de Dias afirmou que a ivermectina não é distribuída “como se fosse jogada pela janela para o povo”.
E que pacientes passam por triagem em unidades de saúde e saem delas com o kit em mãos, a partir da prescrição médica.
Sem vacina e com remédio
Em Itajaí (SC), onde o prefeito Volnei Morastoni (MDB) já providenciou ivermectina para mais de 110 mil pessoas, de acordo com dados da gestão dele, o medicamento continua sendo distribuído ininterruptamente, ao contrário da vacinação, que precisou ser pausada na primeira quinzena de março após se esgotarem as doses.
Apesar de ter sido cobrado no ano passado pelo Tribunal de Contas estadual a respeito da falta de respaldo científico para a aquisição do remédio com dinheiro público, Morastoni não abriu mão da distribuição e a mencionou em uma transmissão, no último dia 17.
“Um dos protocolos é a ivermectina, e, quando o paciente é positivo, nós dobramos a dose por cinco dias. Depois, entra algum antibiótico. Aí, pode entrar corticoide, anticoagulante. Isso tudo a critério médico”, listou o prefeito.
Em Minas Gerais, o discurso pró-tratamento precoce levou consequências a pelo menos dois municípios.
Após um surto de novos casos e mortes em Itajubá, no sul do estado, o prefeito Christian Gonçalves (DEM) anunciou a distribuição gratuita de ivermectina, zinco e vitamina D, a partir do dia 15 de março.
A cidade chegou esta semana ao total de 213 mortos desde o início da pandemia, número mais alto entre os municípios da região.
Parlamentares do PT já acionaram o Ministério Público (MP) de Minas Gerais para impedir a distribuição do medicamento em postos de saúde. O vídeo foi apagado.
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A promotoria de MG também mira a situação de São Lourenço, onde o prefeito Walter José Lessa (PTB) publicou vídeos nas redes sociais este mês falando sobre supostos benefícios do “Kit Covid”. Ele sugeriu que pacientes teriam começado a melhorar após receberem os medicamentos.
Um procedimento do MP apura denúncias de que a prefeitura está incentivando o uso dos medicamentos. Ao todo, São Lourenço soma 56 óbitos e atingiu, na semana passada, a lotação máxima de seus leitos de UTI.
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Foto: Carolina Antunes/PR