Três estudos independentes de EUA, Reino Unido e Dinamarca indicam que a proteção contra o coronavírus aos infectados é de cerca de 80%.
Esse número, similar à eficácia de algumas vacinas, é boa notícia para a construção de imunidade coletiva, mas os 20% de risco do outro lado da equação ainda preocupam especialistas.
O otimismo manifestado por cientistas é contrabalançado por três preocupações.
Primeiro, uma proteção não absoluta significa que os infectados (assim como os vacinados) não estão livres para sair à rua sem máscara e desrespeitando regras de distanciamento.
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Segundo, com acompanhamento máximo de oito meses, os novos estudos não dizem se a imunidade vai durar mais que isso. Por fim, novas variantes do vírus podem driblar essa imunidade.
A despeito das limitações, especialistas reacendem a ideia de que, entre jovens saudáveis, seria interessante vacinar primeiro os que nunca se infectaram.
“Como claramente existe uma considerável proteção induzida por infecção prévia, de ordem similar à de algumas vacinas, num cenário de escassez de doses se pode argumentar que é mais importante vacinar logo aqueles que nunca se infectaram”, diz Stuart Sealfon, pesquisador da escola médica do Hospital Mount Sinai, de Nova York, que estuda o assunto.
“Dessa forma, é possível andar mais rápido em direção à imunidade de rebanho e prover mais proteção coletiva contra a doença para cada dose de vacina que é aplicada”, disse.
Explorar essa imunidade dos pacientes remanescentes de infecção, porém, é diferente de adotar políticas públicas para favorecer a infecção daqueles que ainda não foram expostos ao coronavírus.
Para Sealfon, está claro que essa ideia, já defendida pelo premiê britânico Boris Johnson e sugerida pelo governo brasileiro, seria atitude irresponsável.
“Seria trágico ter de controlar a pandemia expondo pessoas ao vírus, e não pelo uso de tecnologia e ferramentas de saúde pública modernas”, diz.
Sealfon coordenou o estudo mais recente sobre reinfecção nos EUA, que recrutou voluntários no Corpo de Fuzileiros Navais dos EUA.
O grupo foi escolhido porque a rotina de confinamento em embarcações os torna muito suscetíveis a passar o vírus uns para os outros.
Ao longo dos sete meses em que o pesquisador monitorou 3.076 recrutas, porém, ficou claro que aqueles que já tinham se infectado se tornaram 80% menos suscetíveis a infecção posterior.
A taxa foi praticamente igual à verificada nos estudos dinamarquês e britânico, em populações diferentes e com tamanhos distintos. Nenhum dos estudos, porém, acompanhou voluntários por mais de oito meses, o que gera uma dúvida quanto à duração da infecção.
“Para coronavírus comuns, de resfriado, a imunidade adquirida dura relativamente pouco, mas para o Sars-CoV-2, a intuição diz que ela deveria demorar mais e ser mais efetiva”, afirma o infectologista Mauro Schechter, professor da UFRJ.
“O vírus do resfriado comum só fica na mucosa nasal e não invade o organismo, mas o novo coronavírus invade pulmão, rim e outros locais. Então imaginamos que o organismo precisa produzir uma resposta mais potente e mais consistente para combater a viremia”,
A ideia de reservar vacina primeiro para não infectados dos grupos jovens, porém, não parece ter boa aceitação no Brasil.
“Do ponto de vista biológico até seria interessante, neste cenário de escassez de vacina, mas não sei se a gente teria capacidade logística de implementar isso, e a comunicação pode confundir a população”, diz o imunologista Aguinaldo Pinto, professor da Universidade Federal de Santa Catarina.
“O importante agora é passar a ideia de que mesmo as pessoas já infectadas sejam vacinadas, até porque talvez a gente tenha a sorte de as vacinas induzirem uma proteção longeva”, destacou.
Ameaça variante
Com o advento da variante P.1 do coronavírus, dominante no Brasil, avaliar a proteção conferida pela infecção prévia é ainda mais difícil, porque não se sabe exatamente quanto ela pode driblar a imunidade construída contra outras cepas do coronavírus.
Um estudo do Instituto de Medicina Tropical da USP sobre a epidemia em Manaus sugere que a P.1 foi o motor da segunda onda devastadora da Covid-19, mas a conclusão é tirada de projeções e simulações. Ainda não foi feito no Brasil um estudo de acompanhamento como os três citados anteriormente.
Epidemiologistas dizem que a imunidade adquirida pelos pacientes recuperados deve mesmo exercer algum papel na construção de imunidade coletiva do Brasil, mas é difícil quantificar esse benefício dada a incerteza dos dados.
“O problema é que aqui no Brasil não sabemos bem quem são nem quantas são essas pessoas. Não temos os dados, e por isso não usamos para contar”, diz Paulo Petry, professor da UFRGS.
Para ele, há um resquício de otimismo em saber que os convalescentes da Covid-19 devem ajudar a imunidade de rebanho, mas é difícil considerá-los em qualquer tipo de política pública para deter o vírus:
“O mais importante para uma pessoa já infectada é saber que ainda assim é importante ela continuar se cuidando para prevenir reinfecção, e é importante se vacinar quando a vacina estiver disponível”, ressaltou.
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Fonte: Ione Moreno/Semcom