Suspeita de fraude na compra de 10 milhões de kits de teste para covid-19

O MinistĂ©rio da SaĂºde informou que avalia "anular o contrato", "reavaliar a real necessidade de contrataĂ§Ă£o dos testes" e abrir investigaĂ§Ă£o

Suspeita de fraude na compra de 10 milhões de kits de teste para covid-19

Publicado em: 23/10/2020 Ă s 07:24 | Atualizado em: 23/10/2020 Ă s 07:29

Um contrato do MinistĂ©rio da SaĂºde para aquisiĂ§Ă£o de 10 milhões de kits de reagentes usados em testes da covid-19, firmado em agosto por R$ 133,2 milhões, estĂ¡ sob suspeita de irregularidades.

A informaĂ§Ă£o foi repassada pela Diretoria de Integridade (Dinteg) da prĂ³pria pasta ao Tribunal de Contas da UniĂ£o (TCU), durante o trabalho de fiscalizaĂ§Ă£o periĂ³dica das medidas relacionadas Ă  pandemia.

Em relatĂ³rio produzido pela Secretaria de Controle Externo da SaĂºde do TCU, que embasou acĂ³rdĂ£o aprovado na Ăºltima quarta-feira na Corte, a equipe relata “diversas alterações na especificaĂ§Ă£o do objeto a ser contratado” ao longo do processo de compra.

O relatĂ³rio aponta ainda que um pedido de reconsideraĂ§Ă£o apresentado pela empresa que ficou em segundo lugar no processo de aquisiĂ§Ă£o emergencial, alegando direcionamento Ă  vencedora, foi ignorado pelos setores responsĂ¡veis e mantido fora do conhecimento de outros integrantes da pasta.

 

Cancelamento avaliado

 

O MinistĂ©rio da SaĂºde informou que avalia “anular o contrato”, “reavaliar a real necessidade de contrataĂ§Ă£o dos testes” e “instaurar procedimento para apurar a responsabilidade dos envolvidos”, aponta o documento do TCU.

A compra estĂ¡ listada pelo tribunal como um dos dez maiores contratos de aquisiĂ§Ă£o direta feitos pela pasta no contexto da pandemia da covid-19.

“Conforme explanado por um dos integrantes da Dinteg (Diretoria de Integridade do MinistĂ©rio da SaĂºde), a partir da documentaĂ§Ă£o relacionada Ă  contrataĂ§Ă£o, Ă© possĂ­vel verificar a existĂªncia de indĂ­cios de irregularidades na contrataĂ§Ă£o, o que evidencia a falta de planejamento e coordenaĂ§Ă£o por parte do MinistĂ©rio da SaĂºde para a aquisiĂ§Ă£o”, aponta o relatĂ³rio do TCU.

O contrato sob suspeita foi assinado em 21 de agosto, jĂ¡ na atual gestĂ£o do ministro Eduardo Pazuello.

AtĂ© entĂ£o, tĂªm sido comuns denĂºncias sobre mau uso dos recursos pĂºblicos voltados para a Covid-19 por parte de estados e municĂ­pios, mas nĂ£o irregularidades nas compras efetivadas pela UniĂ£o, como Ă© o caso em questĂ£o.

A empresa que venceu, Thermofisher Scientific Inc, representada no Brasil pela Life Technologies Brasil ComĂ©rcio e IndĂºstria de Produtos para Biotecnologia Ltda, tinha que entregar no total 10 milhões de kits de insumos para extraĂ§Ă£o de RNA (material genĂ©tico), sendo 3 milhões em setembro, mais 3 milhões em outubro e 4 milhões em novembro.

Mas, segundo dados atualizados até a primeira semana de outubro, apenas 336 mil itens (3,3%) haviam sido entregues.

 

Direcionamento de projeto

 

No inĂ­cio deste mĂªs, jĂ¡ no fim das atividades de acompanhamento, a equipe de fiscalizaĂ§Ă£o do TCU soube que a segunda colocada, a empresa Actmed, alegou formalmente direcionamento do projeto bĂ¡sico para a empresa vencedora e pediu a inabilitaĂ§Ă£o dela.

A alegaĂ§Ă£o era de que a Thermofisher nĂ£o cumpriu o edital. A concorrente tambĂ©m pedia que atos que alteraram o projeto bĂ¡sico da contrataĂ§Ă£o supostamente para beneficiar a vencedora fossem anulados. O preço apresentado pela segunda colocada, R$ 25,95 por kit, Ă© 94,81% superior ao valor da vencedora, R$ 13,32.

A equipe do TCU verificou que o pedido da Actmed, no entanto, foi inserido em apenas um dos sistemas de tramitaĂ§Ă£o eletrĂ´nica de processos, o SEI, mas nĂ£o foi anexado a outra plataforma, o SIN Processos. Pelo SIN, o contrato estava sendo executado normalmente.

 

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O pedido da Actmed sĂ³ chegou ao conhecimento de outros departamentos interessados do MinistĂ©rio, a exemplo da Diretoria de Integridade, porque a empresa fez uma representaĂ§Ă£o. Foi relatado por integrantes da pasta que “o pedido de reconsideraĂ§Ă£o havia ficado restrito ao conhecimento do Departamento de LogĂ­stica em SaĂºde (Dlog/MS) e da CoordenaĂ§Ă£o Geral de LaboratĂ³rios de SaĂºde PĂºblica da Secretaria de VigilĂ¢ncia em SaĂºde (CGLAB/SVS), Ă¡rea tĂ©cnica requisitante dos reagentes, e que a falta de vinculaĂ§Ă£o do SEI ao SIN inviabilizou a verificaĂ§Ă£o da relaĂ§Ă£o entre os dois processos”.

A Ă¡rea tĂ©cnica do TCU destacou que “para melhor governança e transparĂªncia das contratações, deveria haver um Ăºnico processo que incorporasse todas as informações” e que “a divisĂ£o de documentaĂ§Ă£o de uma mesma contrataĂ§Ă£o em dois sistemas paralelos (SIN e SEI) impossibilitou a equipe de analisar apropriadamente a contrataĂ§Ă£o em pauta”.

 

RepresentaĂ§Ă£o em aberto

 

Outra crĂ­tica do quadro tĂ©cnico do TCU foi de que “a dĂºvida quanto ao quantitativo necessĂ¡rio de insumos para testes a ser adquirido pelo MinistĂ©rio confirma o que a equipe do acompanhamento vem relatando sobre a falta de planejamento nas ações de enfrentamento Ă  Covid-19”.

O TCU informou, no relatĂ³rio, que nĂ£o descarta a possibilidade de uma representaĂ§Ă£o a respeito do tema, mas, por ora, irĂ¡ apenas acompanhar os desdobramentos, tendo em vista que “a Diretoria de Integridade estĂ¡ adotando medidas em relaĂ§Ă£o ao assunto”.

O GLOBO procurou o MinistĂ©rio da SaĂºde, descrevendo os fatos narrados pelo TCU sobre o contrato suspeito, alĂ©m de repassar os dados do relatĂ³rio em questĂ£o, mas a pasta informou apenas que “ainda nĂ£o recebeu tal processo”.

 

TCU cobra transparĂªncia

 

O acĂ³rdĂ£o do TCU aprovado nesta quarta-feira Ă© o terceiro de acompanhamento das ações do MinistĂ©rio da SaĂºde em relaĂ§Ă£o Ă  pandemia. Abordou uma sĂ©rie de falhas da pasta,  como falta de um plano estratĂ©gico de ações e de comunicaĂ§Ă£o. Em um dos pontos, a Corte cobra do ministĂ©rio “ampla transparĂªncia” nas tratativas em relaĂ§Ă£o a vacinas em desenvolvimento.

A pasta terĂ¡ 15 dias, apĂ³s ser notificada, para publicar na internet “qual o papel do MinistĂ©rio da SaĂºde em cada iniciativa e as tratativas para incorporaĂ§Ă£o dos produtos no Programa Nacional de Imunizações”, decidiu o TCU.

A intenĂ§Ă£o anunciada por Pazuello de comprar a vacina chinesa, chamada de Coronavac, foi desautorizada pelo presidente Jair Bolsonaro nesta quarta-feira, causando reações negativas.

Bolsonaro nĂ£o quer se vincular ao imunizante, que Ă© desenvolvido em parceria com o Instituto Butatan, ligado ao governo de SĂ£o Paulo, comandado pelo rival polĂ­tico JoĂ£o Doria (PSDB). A exploraĂ§Ă£o do tema pelo viĂ©s polĂ­tico, por parte dos dois, potenciais concorrentes ao Planalto em 2022, tem sido tambĂ©m criticada por especialistas.

 

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Foto: saude.ba.gov