A blasfêmia
Aguinaldo Rodrigues
Publicado em: 15/09/2010 às 00:00 | Atualizado em: 15/09/2010 às 00:00
Neuton Corrêa*
Na parada de ônibus, o passageiro agitava as pernas, socava o ar, balançava a cabeça negativamente e resmungava não sei o quê. Logo que cheguei ao ponto, com tempo de folga para ir ao trabalho, achei que aquele homem estava prestes a surtar. Mas, aos poucos, a agonia dele foi-me contaminando. O busão das 5h45 estava atrasado dez minutos e também comecei a praguejar tudo. Até a mim mesmo.
“O que faço eu aqui a esta hora?”, indaguei-me, olhando para o relógio do telefone celular. Acontece que, ao levantar a cabeça após olhar o tempo, enxerguei a testa do ônibus metendo a cara na Avenida Timbiras. Mais alegre fiquei ao conseguir identificar a linha, o 458, que me deixaria em frente ao jornal. Então, tudo o que havia dito comecei a desdizer, achando-me sortudo por ter um ônibus que tira 15 minutos entre minha casa e o jornal.
Mesma coisa não aconteceu com o cidadão agoniado. Enquanto corri para passar pela catraca, pela entrada dianteira, ele tomou o rumo contrário com uma carteira de identidade nas mãos. Mas, assim que fiquei cara a cara com a cobradora, ouvi um barulho na porta traseira. Fez um barulho tão alto que achei que iria quebrar o busão. Era ele gritando para o motorista liberar a entrada de idosos.
Não tenho como afirmar nem supor se o motorista deixou a porta traseira fechada deliberadamente ou por esquecimento, até porque tem motora que implica mesmo com passageiros beneficiários de passe livre, seja aposentados, seja cadeirantes.
Vamos voltar ao homem agoniado: eu já havia me esquecido dele, quando voltei escutar sua voz. Desta vez falava mais baixo, com a expressão fechada na direção do motorista. Aproximei-me dele, não para ouvi-lo, mas porque em poucos minutos eu desembarcaria. Nessa hora, com o ouvido quase grudado na boca dele, ouvi: “Porra, Deus é foda! Faz a gente sofrer e ainda vem um f.d.p. desses”.
A blasfêmia me trouxe à mente as histórias do João do Emílio, que se tornou famoso no beiradão onde me criei. Tanto o é que, por lá, quando alguém se queixa, ouve-se um terceiro falar: “Para, João do Emílio”.
Uma dessas histórias que lhe rendeu tal fama se passou quando o atual prefeito de Manaus era governador, entre 1998 e 2002. Todos na comunidade haviam recebido motor rabeta, menos ele. Até o Anta (não sei o nome verdadeiro, mas todos o chamam assim desde criança) ganhou. Quando soube disso, João do Emílio bradou: “O único desgraçado aqui sou eu. Acho até que Deus não gosta de mim.”
Mas a história clássica do Emílio aconteceu num dia que ele e mais um sobrinho saíram para uma pescaria. Antes de escolher o arreio, contam seus parentes, ele decidiu: “Hoje, só vou levar caniço e tarrafa. Faz quase uma semana que vou pro lago atrás desses budecos (pirarucus) e eles não aparecem. Não é possível que hoje é que vão aprontar comigo”. E partiu para a pescaria com os arreios para peixe pequeno.
Acontece que, amigas e amigos do busão, assim que botou a proa do casco (canoa) no lago, os pirarucus apareceram. O barulho deles podia-se ouvir de longe. João do Emílio não quis acreditar, mas, ao ver o enorme cardume com os próprios olhos, não pensou duas vezes. E já partiu se queixando de Deus, mas falando com muito jeito: “Porra, Deus, tu não gosta de mim. Mas tá bom! Vou te perdoar. Eu vou lá buscar o arpão. Não quero muito, Senhor. Só unzinho!”.
Rindo com o sobrinho e fazendo a reconciliação com o Todo-Poderoso, João do Emílio, voltou para casa, distante dali duas horas de remo, ida e volta, e ainda se demorou um pouco mais porque foi atrás de um isopor, antes de voltar para a pescaria.
Remando de volta com tanta vontade, o casco dele até fazia um grosso bigode de águas, mas, assim que chegou ao local de onde voltou, não ouviu mais nada. A água estava tão calma que nem jaraqui boiava. João do Emílio sentou-se, pôs o chapéu para proteger os olhos do brilho do Sol para poder enxergar mais, porém os budecos não boiavam mais.
Depois disso, ele pegou o arpão, levantou-se e gritou: “Puta que pariu, Nosso Senhor, por que Tu faz isso comigo? Se não é pra mim, por que tu me mostra? Pega tudo isso que Tu tá escondendo e mete onde Tu quiser”.
Recordando essas histórias, quase passava do ponto e, ao descer apressadamente, esbarrei no passageiro, quando ele gritou me olhando: “Hoje não é meu dia mesmo!”.
*Filósofo, jornalista, escritor.