Edineia Mascarenhas Dias
Beatriz Goes* (fotos: Valer/Arquivo)
Na historiografia brasileira, a Manaus da virada do século 19 é conhecida como a cidade berço da borracha, da belle époque , das riquezas desmedidas, da luz elétrica, do Teatro Amazonas.
É uma cidade que tinha seu primeiro grande surto de urbanização, inúmeros prédios luxuosos na Avenida Eduardo Ribeiro e milhares de trabalhadores pobres que rastejavam nas periferias da cidade por acesso a serviços básicos de infraestrutura como água e transportes.belle époque
Os excluídos da borracha foram levados para bairros distantes da área central pela política seletiva do poder público; ninguém em Manaus ameaçava mais a imagem de uma capital próspera, moderna e harmoniosa do que a população pobre, desocupada ou mal-remunerada.
Essa separação entre pobres e desempregados e a burguesia se deve, em parte, a um imaginário reforçado pelas classes dominantes; à delirante necessidade de mostrar para o mundo uma cidade civilizada onde todos se enquadravam nos conceitos do fausto.
Partia-se do princípio de que os investidores do grande capital e os emigrantes europeus se sentiriam atraídos somente se a cidade se mostrasse urbanizada e limpa, aos moldes das cidades europeias.
O resultado é que a Manaus da virada do século 19 é uma cidade feita para parecer sem problemas, enquanto na verdade se edifica sobre contradições e conflitos, como mostra a historiadora Edineia Mascarenhas Dias em seu livro A ilusão do fausto, que retorna às livrarias físicas e virtuais, nesta semana, em terceira edição pela Editora Valer .
A obra é resultado de sua pesquisa de mestrado e mostra a Manaus de 1890-1920, especificamente as contradições do dia a dia da cidade, a partir de uma comparação entre a cidade de luxo da elite extrativista e a cidade dos trabalhadores pobres.
Assim, a Manaus que se vê na primeira parte do livro se assenta nas transformações arquitetônicas e urbanísticas da cidade. Já a segunda parte, em A falácia do fausto , relata o cotidiano das classes populares , uma cidade ou sob um olhar histórico crítico, ou uma Manaus apresentada a partir do confronto de seus problemas.
Esse espírito ajuizador levou a autora a fazer um grande panorama da capital amazonense do período analisado, no qual ela recupera tanto a realidade dos cartões-postais quanto a realidade dos excluídos do seu processo de urbanização.
O livro, publicado em 1999, conquistou reedição em 2007 e agora em 2019, com revisão e acréscimos considerados fundamentais pela autora, para uma melhor compreensão da sua abordagem histórica. “[…] acrescentamos nesta edição, registros de estudiosos da Amazônia com contribuição para o entendimento do tema em foco, comentários, resenhas, artigos publicados em jornais locais no momento de lançamento da obra”, explica a autora no prefácio desta terceira edição.
Um dos comentaristas da obra é o escritor Milton Hatoum, autor dos livros Relatos de um certo Oriente , Dois irmãos e Cinzas do Norte , entre outros. “[…] A ilusão do fausto nos faz refletir sobre o impasse gerado por uma modernidade incompleta, cuja herança traduzida dramaticamente em carência social, é mais do que visível na Zona Franca de Manaus”, comenta Hatoum.
A obra é composta por fontes documentais concebidas como oficiais, entre mensagens governamentais, relatório das obras públicas, reproduções selecionadas dos códigos de posturas de Manaus, rascunhos de documentos institucionais e conjunto de imagens da virada do século 19.
Assim, A ilusão do fausto se organiza como um sensível estudo da belle époque ao longo da qual podemos ver Manaus e suas distopias – sua urbanização, seu utópico modelo de cidade moderna, seus impasses – decorrentes do inchaço populacional, que ocasionalmente levou à expansão de seu traçado urbano e intervenções do poder público e, finalmente, às suas política urbanas de exclusão, que, por vezes, anteviam futuros desastrosos aos cidadãos pobres nesse período.
A Cidade do Fausto
A primeira parte de A ilusão do fausto se concentra nos desejos delirantes por uma cidade de luxo de uma classe conectada com o poder público: pessoas que compunham a elite extrativista local, o ex-presidente da província Eduardo Ribeiro (1892-1896), as senhoras de vestidos de tecidos importados, os imigrantes europeus e o que a autora chamou de coronéis da borracha .
Esse e vários outros temas da primeira parte são apresentados em uma narrativa histórica sobre a Manaus de riquezas que se constrói no período estudado pela autora.
O desejo de modernização da capital pelas classes abastadas do final do século 19 e começo do século 20 será responsável pela improvisação de uma cidade moderna e elegante, protótipo de uma Paris dos Trópicos que nos conduz através das inspirações urbanísticas amazonenses ao modelo francês da Paris de meados do século 19 do prefeito do antigo departamento do Sena, George-Eugène Haussmann.
Na literatura arquitetônica, Haussmann ficou conhecido como artista demolidor pelas obras grandiosas que instaurou em Paris que, em pouco tempo mudaram a feição da cidade, tornando-a célebre pelo título de capital do urbanismo moderno.
Não seria exagero afirmar, como faz a própria autora, que a reforma de Paris dá início a uma propulsão de mudanças na fisionomia das cidades do Ocidente, entre as quais, as capitais brasileiras.
Em Manaus, nos deparamos com uma capital que já demoliu boa parte da antiga cidade colonial numa alteração drástica de sua fisionomia.
É deste período o famoso aterramento do igarapé Espírito Santo sobre o qual se edifica a Avenida Eduardo, a instalação do Palácio da Justiça, a construção da Avenida Joaquim Nabuco, a ampliação do Mercado Municipal e a reforma do Porto.
Nessa primeira parte do livro, Edineia Dias nos convida a que nos detenhamos sobre as obras que redefinem o espaço urbano de Manaus, numa tentativa de mostrar a nova organização urbana, com os seus aterramentos, nivelamentos e edificações, que, por vezes, podiam parecer, com suas características europeias e uso de vultuosos orçamentos, mais deslocados da realidade local que qualquer construção existente anteriormente.
A Falácia do Fausto
Um pouco à frente, a autora vai se deter em um outro lado da Manaus de 1890-1920, no qual a Paris dos Trópicos já está estabelecida e apresenta os problemas típicos das grandes cidades: o aumento drástico da população, a dificuldade de convívio dos setores dominantes com as classes populares da capital, a falta de serviços de atendimento para os trabalhadores da região, o expressivo aumento do espaço urbano.
É nesse cenário que temos o nascimento de umas das concepções mais conhecidas da autora: a falácia do fausto, que diz respeito a Manaus dos trabalhadores ou “dos marginalizados da opulência, dos desassistidos da fortuna”.
Nos diz a autora que, “para dar conta dos pobres e desocupados […] as estratégias estabelecidas foram amplas, compreendendo uma política de separação e isolamento desses segmentos em bairros distantes da área central […] em ambientes afastados e fechados” (p.121).
Vivia-se em um período no qual parecia que o modo de vida das elites locais predominaria sobre toda e qualquer rotina dos cidadãos comuns: o estabelecimento de um conjunto de condições de higiene para a população era um retrato desse raciocínio, que não se encontrava encontra isolado.
Ele estava amparado por uma variedade de códigos de posturas que servem ao mesmo propósito: livrar o Centro de Manaus de elementos que atrapalham tal modo de vida dominante.
Nessa parte do livro já não encontramos mais histórias da cidade de luxo, apenas relatos do dia a dia das pessoas comuns tentando lidar com a sua realidade na nova Paris dos Trópicos .
Dessa maneira, a narrativa da obra deixa de lado as grandiosas reformas urbanas para se concentrar na rotina e nos problemas dos trabalhadores locais.
A liberdade individual cai por terra quando a administração pública impõe “através das posturas e decretos municipais, todo um conjunto de ações disciplinando a vida do cidadão urbano. As proibições com penas de multas e prisões transformam-se em medidas eficazes no processo civilizatório” (p.123).
Para além do fausto
Se a Manaus da virada do século 19 cristalizou-se como uma afirmação de dominação de uma classe abastada, disseminando seu modo de vida específico, na obra A ilusão do fausto as narrativas do cotidiano “dos de baixo” dialogam com as narrativas de luxo e riquezas das elites dominantes.
Remontar a experiência dos trabalhadores do início do século parece ser a lógica da obra da historiadora Edineia Dias. Aqui mais uma vez nos deparamos com a questão do outro lado do fausto, como tão bem explicou a autora: “O outro lado do fausto é o aspecto que o imaginário da elite extrativista não registra, nem a historiografia produzida sobre a época, mas não é por isso que não tenha existido e exigido dos setores dominantes” (p.119).
É nesse sentido, de observar esta capital dos trópicos na qual a população pobre se vê passando por um processo de exclusão que lhe é forçado pelos setores dominantes, que pode ser interessante refletirmos sobre Manaus a partir da obra de Edineia Dias.
Este construto urbano pode ser uma das entradas possíveis para se pensar uma cidade que pode estar tão inerente em nosso imaginário cotidiano que um olhar de estranhamento se torna improvável, se tomado impensadamente.
*A autora é jornalista e professora da FIC/Ufam