Em meio à comoção, a viúva Darling volta para casa no fim da manhã. O agora defunto descansa sobre o assoalho da sala.
O corpo ainda está quente.
Os filhos, em volta, os que moravam ali, choram ao redor do extinto. Chegam outros filhos, ainda mais comovidos. Os netos e bisnetos se abraçam e também se desesperam.
O avô acabara de sucumbir na mercearia vizinha, do outro lado da Rua da Independência, após infringir a recomendação médica de que seu fígado não resistiria a mais um gole de álcool.
No entanto, a viúva Darling passa indiferente ao clima de consternação. Não cede um passo nem um olhar fora de sua rotina.
Ela estava voltando das vendas de cheiro-verde, de couve e outras verduras que todos dias leva para o mercado.
Ainda entrou na casa com o chapelão de palha que protege sua branca pele do escaldante sol amazônico.
Ela se dirigiu à cozinha, pendurou o sombreio no prego do esteio e foi ao quintal deixar a brilhosa bacia de alumínio que usa para transportar seus produtos para as vendas. Produtos estes que planta ali mesmo no quintal de sua casa.
Todos esperavam que dona Darling fosse também chorar e lamentar a morte do marido.
No entanto, a viúva entrou no quarto (o único da casa) e ali se trancou até a boca noite.
Pelas frestas das paredes do quarto, só dava para ver uma mulher sentada, sussurrando as 50 infindáveis orações do Terço Católico.
Quando saiu do quarto, vestindo preto, cobrindo a cabeça com um véu também preto e carregando uma vela sete dias, sete noites, que parecia estar amarrada ao Terço, manteve o silêncio das seis horas passadas. Às vezes, colocava as mãos sobre o peito, entrelaçadas pelos dedos, e olhava para a cumeeira da casa, como quem suplica aos céus.
Então, quando saiu de sua reclusão, a viúva Darling cruzou a sala do velório, cruzou as pessoas, sem nem sequer aceitar os pêsames, foi à cozinha, pegou um banco e, pacientemente, colocou-o ao lado do falecido.
A essa altura, o corpo já estava no caixão, sobre a mesa de jantar da família.
O banco, um tamborete, ficou ao lado do corpo do marido. Bem perto da cabeça.
Aí, ela disse:
“É, meu velho!!! Realmente, depois de mais de 50 anos, você me deixou. Momentos bons, momentos difíceis nós vivemos. Mas a gente se amava. Eu fiz tudo por você, tudo que podia. E você não me ouvia. Era malouvido. De um tempo pra cá, deu pra não prestar, deu pra mentir. Virou um imprestável”.
Um filho tenta interrompê-la. Ela, no entanto, segue a oração de viúva.
“Eu sei que ele não vai me ouvir. Por isso mesmo estou aqui, agora. Quando ele estava vivo, ele não me ouvia. Agora, ele vai me ouvir, até eu cansar. E, por falar nisso, traz um café com bolacha de motor. Eu vou demorar”.
Arte: Gilmal