A praça e a saudade
Publicado em: 30/03/2009 às 00:00 | Atualizado em: 30/03/2009 às 00:00
Ana Celia Ossame*
Não pensei que a ida, no último sábado, 28, à recém-reinaugurada Praça Heliodoro Balbi, fosse me fazer viajar a um passado não tão remoto, mas de um sabor muito especial capaz de acender meus olhos para o tempo em que, estudante do então Colégio Estadual do Amazonas, experimentei do orgulho que significava ser aluna daquela escola, que sempre teve aquela praça como vizinha perigosa e ao mesmo tempo deliciosa para os alunos que “matavam” aula.
Era final da década de 70 e eu me submeti a fazer o então segundo grau em saúde, curso oferecido no Estadual, só por querer estudar ali, já que não tinha qualquer inclinação para essa área. Não lembro se, nessa época, com menos de 20 anos, já queria ser jornalista. O que sabia mesmo era que queria estudar no Estadual, onde, nos dias de falta de professor ou devido a qualquer outro problema e éramos liberados da sala, não fazíamos questão de voltar logo para casa, pois tínhamos a praça para jogar boas e agradáveis conversas ao vento.
Meu pai era bedel à noite daquela escola bela e grandiosa onde conheci professores homéricos. A principal e inesquecível Nely Braga, chamada ironicamente de “jararaca” por não ter pena de aluno e reprovar sem dó grande parte das turmas. Ela nos obrigava a ler Machado de Assis, José de Alencar, Joaquim Manoel de Macedo, entre outros. Com isso ajudou aos interessados, a conhecer e amar literatura e a buscar escrever corretamente. Tínhamos medo dela e odiávamos isso.
Mas foi bom ter passado pela sua rigorosa caneta e cara de brava. Tive oportunidade de dizer isso a ela em uma entrevista que fiz publicada no Jornal A Crítica, quando a ouvi criticar a falta de interesse dos estudantes para o aprendizado da língua e da leitura. Nely já morreu, mas as lições dadas por ela não. Sou grata ter lido os clássicos da literatura brasileira. E ter sido aprovada por ela.
Era tanta exigência que acabávamos decorando o início dos livros. Nunca esqueço e acho que os colegas da época também, do início do romance de Iracema, quando José Alencar descrevia a “virgem dos lábios de mel e os olhos mais negros que a asa da graúna” ou Machado de Assis, em Dom Casmurro, quando ele se referia a um rapaz que “conhecia de vista e de chapéu…”
Lembro também da bonita e elegante professora Ana Maria Botinelly Cunha e Silva, que nos dava aulas de Moral e Cívica, olhem só! Naquela época, a Ditadura Militar nos fazia estudar as leis do civismo e da pátria e gostar disso. Nunca mais soube dela, marcante no seu jeito de ser.
Com um espaço interessante à disposição, sempre encontrávamos tempo para ir à Praça da Polícia, nome popular daquele local. Lembro também de quando conseguíamos uns trocados íamos ao Cine Guarany e ao Veneza para assistirmos aos filmes da moda. Na verdade, no Guarany só costumava passar filme pornográfico e, como ainda não tínhamos 18 anos, era mais difícil entrar. Mas nunca esqueço ter assistido ao filme chocante daquela época, Império dos Sentidos, exibido no Veneza, onde só entramos porque um colega conhecia o porteiro.
Estudei no Colégio Estadual de 1976 a 1980. Durante aquele tempo aquela praça foi dos estudantes. Não fumávamos nada de droga e nem mesmo cigarro comum. Nem pensávamos nisso. Nosso tempo era gasto falando mal dos professores, que é a melhor coisa que aluno pode fazer, além de estudar, claro. E ponto. Era um lugar seguro, tranquilo, agradável, mas deixou de ser isso durante longos anos, ocupada por cheira-colas, hippies e mendigos, completamente abandonada pelo poder público.
Mas desde a semana passada voltou a ser um espaço da coletividade a partir da reinauguração promovida pelo Governo do Estado, sob a batuta do secretário de Cultura, Robério Braga. Não sei o que vai acontecer com os hippies que costumavam abrigar-se ali. Espero que somem. E que não sumam.
Fico feliz em saber que a praça voltou a ser um espaço para o encantamento, acrescida de beleza e a simplicidade do cuidado que permite as lembranças e, quem sabe, como antigamente, inspirar os poetas do Clube da Madrugada e os outros.
Viajar no tempo, nesses tempos em que tudo é imediato e breve, é significativo. Ver a praça voltar a ser do povo é mais significativo ainda. Só faço um reparo: Se não faltou gente com queixo caído diante da dança das águas dos chafarizes, faltou quem combinasse o horário de fechamento do Palácio Provincial, onde funciona o museu. Muita gente bateu com a cara na porta. No sábado e domingo, o horário de visita não pode ser estendido após às 19h?
É importante dizer que a obra é bela e está à altura do hoje Colégio Amazonense do Pedro 2º, nome que substituiu o do Estadual. E está ao alcance do público, que parece ter reaprendido o caminho, pois compareceu em massa.
Uma praça serve para isso. Para os passarinhos fazerem seus cantos e seus caminhos e para o povo, em pleno uso da cidadania, sonhar e gastar minutos do seu tempo tão precioso para ver a dança das águas. Isso, como diz a propaganda de um certo cartão de crédito, não tem preço. E não pode ter mesmo.
* Jornalista e pós-graduada em Marketing pela FGV.