Aquarela do busão

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 18/10/2010 às 00:00 | Atualizado em: 18/10/2010 às 00:00

 Neuton Corrêa* 

Não sei se já aconteceu com vocês, mas, às vezes, flagro-me pensando coisas absurdas. Acontece que na hora nem me toco que são absurdas. São tão irreais e tão verdadeiras, ao mesmo tempo, que, quando retorno à realidade, o real torna-se irreal. Nos últimos tempos, tenho feito um esforço para descobrir o momento mais frequente desses pensamentos. Descobri: geralmente, quando estou na parada de ônibus.

Esta semana, por exemplo, ao esperar o 57 e/ou o 58, ocupei-me a conversar com uma folha de papel.

Só um minutinho.

Antes de falar da folha de papel preciso explicar sobre o 57 e o 58. Na realidade, eles são a corruptela do 457 e do 458. Poderia defini-los assim: é um agrado, um apelido. Fica mais fácil para os passageiros dos núcleos 2 e 3 da Cidade Nova e do conjunto Boas Novas falar sobre eles sem ter que pronunciar um monte de números. Basta dizer: lá vai o 57 ou lá vem 58, que já se sabe do que se trata.

Das 17 linhas de ônibus que passam por ali, o 57 e 58 são os únicos a serem tratados carinhosamente pelo público. O único problema deles é a demora, mas, no geral, sobram-lhes elogios. O Nenca, meu vizinho, tirava uma hora para chegar ao trabalho, sem falar nos transtornos do aperto no 418; o Célio também, ele tinha que pegar dois busões. Agora, não tiram meia-hora. E mais: viajam sentados.

Eu, nem se fala: tiro 20 minutos de casa ao jornal, contando com a caminhada que faço da Bola do Coroado à redação. Isso quando venho no 57. Pelo 58, desço em frente ao Manaus Hoje.

Sim, deves estar perguntando o que tem a ver a folha de papel com os ônibus. Respondo: tudo.

Pois num desses dias quando esses danados do 457 e do 458 (pronuncia-se o nome completo quando a gente está p. vida com alguma coisa) demoraram a passar, na viagem de volta, fiquei a disfarçar a angústia da espera a conversar com uma folha de papel. Não era uma folha inteira. Era uma tira, da largura de papel higiênico e da altura de uma folha de papel ofício A4: branca; de um lado, fosca e de outro, brilhosa como papel de fotografia.

No primeiro momento, nem dei bola para o papel, que estava sentado ao meu lado, no meio-fio da rua. Mas, de repente, observei a parte brilhosa e tive uma ideia: usá-lo para forrar o concreto onde eu sentava. E assim o fiz.

Acontece que, amigos do busão, o ônibus demorou. Então, lembrei-me do papel (mais pelo brilho), tirei-o debaixo de mim e comecei a tratar com ele.

Primeiro, olhei-o e ri de mim mesmo, dizendo: “esses caras são malucos”. Falei isso pensando no filósofo britânico John Locke (1632-1704), que comparava a mente humana a uma folha de papel em branco. Dizia que essa folha era preenchida à medida em que se iam conhecendo as coisas. Ou seja: nascemos sem nenhuma letra, mas podemos crescer com a mente como uma biblioteca babilônica. É só abastecê-la de conhecimentos.

Passada a viagem filosófica e ainda esperando o busão, lembrei-me da “Aquarela”, do Toquinho, o genial pintor que conheci na minha infância, quando o ouvia pela rádio, cantar: “Numa folha qualquer/ Eu desenho um sol amarelo/ E com cinco ou seis retas/ É fácil fazer um castelo…”. Ainda moleque, bem moleque, pensava: “Esse cara desenha pra caramba”.

Tirei a caneta que estava pendurada na gola de minha camisa e, naquela folha qualquer, comecei a escrever a “Aquarela do busão”.

*Filósofo, jornalista e escritor.

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