Luana Lourenço e Ivan Richard/ Agência Brasil
A presidenta Dilma Rousseff sancionou ontem (20), com vetos, o novo Marco Legal da Biodiversidade, que regulamenta o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado. “Os vetos foram pontuais e não descaracterizam o espírito da nova lei”, resumiu a ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira A nova legislação substitui medida provisória em vigor desde 2001, alvo de reclamações principalmente da indústria e da comunidade científica.
A lei define regras para acesso aos recursos da biodiversidade por pesquisadores e pela indústria e regulamenta o direito dos povos tradicionais à repartição dos benefícios pelo uso de seus conhecimentos da natureza, inclusive com a criação de um fundo específico para esse pagamento.
“Conseguimos elaborar uma lei que combina nossa capacidade de desenvolver, de incluir as pessoas nesse desenvolvimento e gerar inovação a partir de pesquisa em ciência e tecnologia. Estamos garantindo que haja um ambiente favorável, amigável, para que pessoas que têm o conhecimento tradicional tenham direito a uma participação, recebam o royalty [direito autoral]; estamos garantindo que pesquisadores não tenham limites para pesquisar; e estamos garantindo que empresas possam, sem conflitos e sem atribulações ou contestação, utilizar esse conhecimento”, disse a presidenta Dilma Rousseff em discurso na cerimônia.
Segundo Dilma, a nova legislação vai permitir que o Brasil avance na corrida pela inovação na área de biotecnologia. A presidenta também destacou a criação do fundo de repartição de benefícios, que deverá garantir repasses para as comunidades tradicionais mesmo quando um conhecimento não estiver atrelado a um grupo específico, como uma determinada tribo indígena. A lei determina que as empresas deverão depositar no fundo 1% da renda líquida obtida com a venda do produto acabado ou material reprodutivo oriundo de patrimônio genético, de acordo com o Ministério do Meio Ambiente.
“Esse processo integra quase 300 povos e comunidades tradicionais, o que mostra, por parte do Brasil, uma grande prova de capacidade de desenvolver-se sem deixar sua população para trás, sem fazer que sua população seja excluída disso. Eles vão ser respeitados, eles vão participar do processo de decisão. Enquanto aquilo [produto] estiver sendo comercializado, gerando valor, eles continuarão recebendo”, explicou Dilma.
Para os cientistas, a principal mudança na lei é a autorização para ter acesso aos recursos da biodiversidade para os estudos. A regra em vigor atualmente classificava como biopirataria as pesquisas feitas sem autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético, o que colocava muitos na ilegalidade. Agora, os cientistas farão um cadastro no Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação e poderão iniciar as pesquisas.
“Garanto aos pesquisadores que eles não serão mais molestados, não sofrerão mais o bullying de terem suas plantas submetidas a processos ou ameaça de processo que não são compatíveis com a ciência e com a pesquisa”, disse o ministro da pasta, Aldo Rebelo.
Izabella Teixeira acrescentou que a nova lei vai melhorar a fiscalização por “permitir saber quais processos têm que ser fiscalizados”. A ministra também destacou que a sanção do novo marco regulatório impulsiona a ratificação, pelo Brasil, do Protocolo de Nagoya, instrumento de implementação da Convenção da Diversidade Biológica (CDB). “Deve propiciar uma nova interlocução a respeito da aplicação da CDB no Brasil, concluímos o arcabouço jurídico de aplicação da convenção. Espero que a gente possa agora, nesse novo patamar de consolidação e de entendimento, dialogar com o Congresso Nacional para ratificação do Protocolo de Nagoya.”
Vetos – Os vetos só foram divulgados hoje (21) no Diário Oficial da União.
O principal veto está relacionado à repartição de benefícios com as comunidades tradicionais. Dilma retirou da lei um parágrafo que isentava do pagamento de royalties produtos com componentes da biodiversidade que tiveram a pesquisa, ou seja, o acesso ao patrimônio genético ou conhecimento tradicional, iniciada antes de 29 de junho de 2000, data de edição da primeira legislação sobre o tema. Com o veto, a isenção valerá apenas para quem iniciou a exploração econômica do produto acabado antes desta data e não a pesquisa.
“Ao vincular a repartição de benefícios ao acesso e não à exploração econômica, o dispositivo fugiria à lógica do projeto. Além disso, não haveria mecanismo apto a garantir a comprovação do acesso à data fixada, o que resultaria em dificuldades operacionais. Com isso, haveria risco de distorções competitivas entre usuários, agravado no caso de acesso no exterior, propiciando ainda tentativas de fraude à regra de repartição de benefícios”, justificou a presidenta na mensagem de veto.
Dilma também retirou da lei o Artigo 29, que definia os órgãos responsáveis pela fiscalização do cumprimento da lei, de acordo com a área de atuação. Segundo Dilma, a distribuição dessas responsabilidades é de competência do Executivo e não do Congresso Nacional.
Também foram vetados trechos que criavam a necessidade de autorizações adicionais para o acesso de pesquisadores aos recursos da biodiversidade ou ao conhecimento tradicional. “Tais procedimentos poderiam resultar em mero entrave burocrático, contrariamente à lógica da medida”, de acordo com a mensagem de veto.
Um dos avanços da nova lei, segundo especialistas, foi justamente descriminalizar a atividade científica. Pela legislação vigente atualmente, pesquisas feitas sem autorização do Conselho de Gestão do Patrimônio Genético eram classificadas como biopirataria. Como o processo de autorização é lento, muitos cientistas trabalhavam na ilegalidade.
Reação – Representantes de movimentos sociais, de comunidades tradicionais e de pequenos agricultores criticam o processo final de elaboração do Marco Legal da Biodiversidade. Para esses movimentos, a nova lei, que regula o acesso ao patrimônio genético e ao conhecimento tradicional associado, fere direitos adquiridos dessas populações e privilegia setores, como a indústria farmacêutica e cosmética. Eles esperam reverter alguns pontos durante a regulamentação da norma.
“Essa lei é melhor do que as regras que tínhamos, mas longe ainda do que deveria ser. Então, afirmo que a construção não teve a participação sólida, consistente dos movimentos sociais, mas foi o que foi possível chegar em uma construção às escuras dos movimentos. É uma lei melhorzinha do que se tinha, mas muito longe do que deveria ser”, disse à Agência Brasil o diretor do Conselho Nacional das Populações Extrativistas da Amazônia (CNS), o antigo Conselho Nacional dos Seringueiros, Manoel Cunha.
“Fomos alijados de todo o processo de debate de construção do projeto de lei, que até 2013 tínhamos interlocução com o governo, especialmente, com o Ministério do Meio Ambiente. Mas, a partir de 2014, o governo se fechou ao diálogo com as organizações sociais e manteve diálogo intenso com a indústria e com a academia”, reforçou o engenheiro agrônomo, membro da Coordenação Nacional do Movimento dos Pequenos Agricultores, da Via Campesina, Marciano Toledo da Silva.
“Fazendo política” – A ministra do Meio Ambiente, Izabella Teixeira, no entanto, discordou das críticas e acusou os representantes dos movimentos sociais de estarem “fazendo política”. “Vários representantes de comunidades tradicionais estiveram no Ministério do Meio Ambiente, inclusive, concordando com a proposta. Temos os registros e se divulgarmos os nomes dessas pessoas vamos saber quem está fazendo política”, destacou.
Para a ministra, o texto final da proposta é resultado das discussões feitas no Congresso Nacional. “A articulação [do governo] não foi só com os povos ou comunidades tradicionais, mas com os empresários, com os formadores de opinião, com os cientistas. Todo mundo tem que ir para dentro do Congresso Nacional e articular suas posições. E não apenas para ser ouvido, mas incluir suas propostas e ganhar nos argumentos.”
Para Manoel Cunha, a expectativa é que durante o processo de regulamentação da lei, o diálogo com as comunidades tradicionais seja ampliado. “Nossa ansiedade é que se consiga fazer alguns ajustes na regulamentação. Temos a clareza de que [a lei] não foi escrita em pedra, principalmente no que fere os direitos das comunidades, e que podemos ir mudando alguns artigos.”
Entre os pontos negativos da nova lei, conforme os questionamentos do CNS, está a isenção de multas para a empresas que não pagaram royalties antes de 2000. “A anistia é uma perda muito grande para as comunidades”, frisou. “Outra coisa que nos fere muito é o dispositivo que permite que as empresas decidam onde fazer os investimentos [relativos à compensação]. A empresa pode ter acesso ao conteúdo genético em um lugar e decidir fazer o investimento do acesso ao patrimônio genético em outra comunidade, outro lugar”, argumentou Cunha.
Já o representante da Via Campesina disse que a lei da forma como está coloca em risco a manutenção e a conservação de espécies produzidas ao longo dos anos pelos pequenos agricultores e comunidades indígenas. “O mínimo que a gente exige é a participação no processo de regulamentação, ainda mais porque a indústria está participando ativamente desse processo. Se há interesses econômicos das grandes corporações, também há interesse da nossa parte. Os nossos direitos estão sendo violados. Uma série de questões de direitos já reconhecidos, como o trabalho dos povos indígenas e dos próprios pequenos agricultores, que vêm fazendo trabalho de melhoramento genético há décadas e, agora, a indústria quer se apropriar disso”, disse Toledo à Agência Brasil .
O Marco Legal da Biodiversidade substitui uma medida provisória em vigor desde 2001, alvo de reclamações, principalmente, da indústria e da comunidade científica. A nova lei define regras para acesso aos recursos da biodiversidade por pesquisadores e pela indústria e regulamenta o direito dos povos tradicionais à repartição dos benefícios pelo uso de seus conhecimentos da natureza, inclusive com a criação de um fundo específico para esse pagamento.