Gerson Severo Dantas*
Jornalista e professor de Jornalismo, recebi com naturalidade a decisão do Supremo Tribunal Federal de considerar inconstitucional a exigência do diploma de nível superior em Comunicação Social para o exercício da atividade jornalística. Os argumentos do ministro Gilmar, relator do processo, e dos ministros que o seguiram, são razoáveis, embora cause uma tsunami na categoria, que há 40 anos se organiza a partir da premissa expressa no decreto-lei 282. Mas por que a decisão era natural? Vamos aos fatos, dos mais distantes aos mais recentes:
Em primeiro lugar, a decisão era natural pela própria conformação da nossa mais auta corte de Justiça. O auta, aí, não é erro. O que uma categoria que reúne alguns milhares de profissionais (alguns sem diplomas) poderia esperar da corte que referendou a expulsão da brasileira Olga Benário Prestes, grávida de uma brasileira, esposa de um capitão do Exército brasileiro, pela Ditadura do Estado Novo, que enviou a líder comunista para morrer nos fornos crematórios do Terceiro Reich? Resposta: Nada!
O que jornalistas poderiam esperar de uma corte que, por longos anos, considerou constitucional a subordinação feminina aos seus maridos, como tão bem está expressa, por exemplo, no Código Penal? Resposta: Nada!
O que nós, jornalistas por formação, poderíamos esperar de uma corte que em sucessivos regimes referendou leis autoritárias e, portanto, coonestou com atos de arbítrio, por exemplo, ao longo dos 21 anos da ditadura militar iniciada em 1964? Resposta: Nada!
O que nós, jornalistas qualificados, poderíamos esperar de uma corte que em mais de cem anos nunca condenou um político? Resposta: Nada!
O que nós, jornalistas militantes de causas impossíveis, poderíamos esperar de uma corte, que, ao arrepio das fartas provas, absolveu um ex-presidente da República envolvido com um sem números de irregularidades? Resposta: Nada!
Acrescente-se que foi esse nihil obstat dado pela mais auta corte do País que possibilitou o retorno a vida pública do mal-afamado Fernando Collor de Melo. E não adianta reclamar.
Mas o que esperavam nós, jornalistas umbilicalmente ligados aos movimentos sociais, do relator do processo, ministro e presidente do STF e do Conselho Nacional de Justiça, Gilmar Mendes? Resposta: Apenas o que ele fez: considerou a exigência inconstitucional e influenciou a decisão dos outros magistrados.
Mas quem é esse Gilmar? Esse Gilmar é o mesmo ministro que tirou da cadeia duas vezes o magnata Daniel Dantas em menos de 24 horas. É o mesmo ministro que atropelou o Superior Tribunal de Justiça (STJ) para dar as duas decisões que beneficiaram Dantas e que por isso enfrentou a revolta de centenas de juízes federais, que não foram devidamente punidos porque a causa que abraçaram era justa.
Gilmar Mendes, o pior, é patrão de capangas no Mato Grosso, onde têm fazendas denunciadas pela Comissão Pastoral da Terra da Igreja Católica. Quem disse que Gilmar têm capangas? O ministro Joaquim Barbosa, em rede nacional de televisão, e que até hoje não foi contestado ou processado por Gilmar. Ou seja, Gilmar calou diante das verdades ditas por Joaquim Barbosa. O que esperar dele? Nada!
Bem, da mais auta corte não poderíamos esperar nada diferente mesmo. Mas nós, jornalistas diplomados e supostamente organizados em nossas entidades, também não estamos inocentes e livres de imputação no desenlace desse processo. Novamente recorramos aos fatos, dos mais antigos para os mais recentes.
Escudar-se ao longo desse período numa legislação produzida durante a ditadura militar foi um erro fatal, deu margens enormes para a contestação. Nossa categoria, tão absoluta e senhora de seus poderes, desdenhou do potencial da argumentação patronal, defendeu que o decreto-lei foi recepcionado pela Constituição de 88, quando as controvérsias sobre isso eram flagrantes, além de antipáticas.
Mas nosso pior pecado foi deflagrar uma luta fratricida com outras categorias afins, como a dos Relações Públicas, dos Arquivistas, na criação do Conselho Federal de Jornalismo. Essa batalha atraiu para nós, enquanto categoria profissional, a ira dos nossos e dos outros, culminando com a decisão do ministro Gilmar. A categoria também, escudada no decreto-lei, comprou brigas dentro das próprias redações, com colunistas sociais e comentaristas de futebol para TV. Foram brigas que fizeram mais mal do que bem.
Por fim, nosso maior erro nesse tempo foi a divisão flagrante dos profissionais. Médicos, de um modo geral, detestam-se, detonam uns aos outros, mas quando o assunto envolve bens coletivos, todos estão juntos e são amigos desde os bancos da Faculdade. Jornalistas não. São, parodiando um colega, “uma agremiação de amigos formada só por inimigos”. Poucos se gostam, a maioria se detesta e como é mister da profissão não guarda isso só para as disputas internas, faz questão de espalhar a divergência – e muitas vezes a maledicência – a todos os públicos possíveis.
Uma última observação: A decisão do STF rebaixou-nos, jornalistas por formação, de categoria, vai precarizar nossas relações de trabalho, mas, pelo que vejo nos comentários nos devidos fóruns, o que mais incomodou mesmo foi a comparação com os chefes-de-cozinha, que são igualmente profissionais merecedores de respeito. Nada podia dar certo mesmo!
*Filósofo, jornalista, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.