A poesia é um dizer sobre o mundo e uma forma de compreensão e expressão do diálogo quase sempre tensivo do eu lírico com a realidade. É pela palavra que o poeta evoca suas vivências e tece, por meio da sua imaginação e labor criativo, seu discurso e testemunho sobre sua existencialidade. Num belo texto sobre os “Poderes da poesia”, o pensador Tvetan Todorov (2012, p. 31) afirma que “O grande poeta se torna capaz de dar um alcance universal às experiências pessoais das quais ele fala em seus versos”.
O fenômeno poético surge, como um lampejo ou uma revelação, do convívio do sujeito lírico com as contingências do real. A obra poética de Luiz Bacellar é uma reminiscência vívida e profundamente humana da condição singular do sujeito criativo com os dramas de sua existência e relação com seu universo vivencial: seu despertar para a vida, seu encantamento e o florescer de sua habilidade para transfigurar artisticamente suas vivências e percepções. No poema que abre Frauta de barro (BACELLAR, 2011, p. 21), “Variações sobre um prólogo I”, essa experiência é manifesta de forma intensa e delicada:
Em menino achei um dia
bem no fundo de um surrão
um frio tubo de argila
e fui feliz deste então;
rude e doce melodia
quando me pus a soprá-lo
jorrou límpida e tranquila
como água por um gargalo.
A poesia de Bacellar se consubstancia na convergência entre o particular e o universal. O poeta, confirmando o ponto de vista de Todorov, tece com os fios de seus versos uma tapeçaria poética em que seu universo vivencial se amalgama com os acontecimentos do mundo, emprestando à sua lírica universalidade e vigor estético – fato apontado por Elson Farias (2020, p. 33) no sensível e revelador ensaio poético-biográfico Luiz Bacellar e sua poesia , em que recupera fatos relevantes sobre sua vida e obra: “A sua poética corresponde a uma linha de expressão recorrente aos processos de formação histórica da arte literária”, tendo como locus de sua constituição existencial e criativa seu lugar de nascimento – Manaus: espaço de seu despertar para a consciência de seu estar-no-mundo:
Os motivos de uma parte de sua poesia, no entanto, renascem da geografia e do ambiente social de Manaus… Há momentos em que se abstrai das questões circunstanciais da vida urbana da cidade e se lança no universo mágico do amor, da solidão e do sonho…
II
O poeta nasceu e viveu o seu despertar artístico e subjetivo numa cidade à deriva: Manaus – capital de um mundo que vivia as consequências da derrocada do fausto da borracha, a partir da segunda década do século XX, com o declínio da produção do látex na Amazônia e a valorização e crescimento da manufatura desse produto nos seringais planejados da Ásia, financiado pelo império inglês – que contrabandeou as sementes da região amazônica.
Bacellar nasceu no dia 4 de setembro de 1928, sob o arco temporal dessa época decadente e sem perspectiva.
O poeta (de colete preto ), ladeados por amigos: Roseli e Elson Farias, Isaac Maciel, Mauri Marques, Tenório Telles, Mariozinho Simões, Zemaria Pinto e Lucinha Cabral.
Essa realidade terá profunda repercussão sobre a sensibilidade e a criação poética do escritor. Frauta de barro , lançado em 1963, é um livro-testemunho sobre esse tempo e a atmosfera existencial reinante, em que o ser poético se choca com os resquícios da modernidade, prefigurados na cidade de Manaus – palco das vivências de um sujeito lírico em busca de um sentido para o seu estar-no-mundo. O soneto “Noturno do bairro dos Tocos” (BACELLAR, 2011, p. 83) rememora, de forma intensa e melancólica, esse drama vivido por uma cidade e sua gente, recuperado pelo olhar sensível do poeta:
Há tanta angústia antiga em cada prédio!
Em cada pedra nua e gasta. E agora
em necessário pranto que demora
o amargo verso vem como remédio
pelos sonhos frustrados em cada hora
da ingaia infância. Madurando o tédio
nos becos turvos, porque exige e pede-o
inquieta solidão que assiste e mora
em cada tronco e raiz, calçada e muro:
Chora-Vintém, O-Pau-Não-Cessa. Impuro
se derrama um palor de lua morta
nas crinas tristes, no anguloso flanco:
memória e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.
Esse tom reflexivo, em que se depreende certo desconsolo diante de um cenário social que se autodestruía e se autoflagelava, num cenário histórico dramático e de dissolução, reveste o canto desse poeta, que, à maneira de Baudelaire, com sua Paris desintegrada pela modernidade, elege sua cidade de nascimento, como musa triste e atraiçoada de sua poesia.
III
O poemário de Bacellar não se circunscreve aos temas urbanos, mas incorpora questões relativas à memória, à infância, alusão ao universo artístico, especialmente à música, questionamentos metafísicos e seu interesse pela natureza amazônica – manifesto no seu belo livro Sol de feira , publicado em 1973. Esta obra se corporifica numa colheita de pomos poéticos, em que os frutos do ambiente natural da Amazônia, os nativos e os aclimatados, são transfigurados poeticamente e retratados com rara beleza, pequenas miniaturas, belas e impecáveis, verdadeiro exercício de linguagem, ourivesaria plasticamente delicadas. Exemplo disso é o “rondel X do abacaxi” (BACELLAR, 1998, p. 120), uma pérola da lírica brasileira:
com teu cocar
de verdes plumas
feroz de aprumas
para lutar:
feres a mão
que corta as cruas
douradas puas
do teu gibão;
abacaxi,
topázio agreste,
cristal-farol:
cada rodela
da tua polpa
revela o sol
O que sobressai na leitura deste poema é a perícia criativa de Bacellar. Vertido numa linguagem precisa, o texto evoca a imagem do fruto não como uma natureza-morta, uma cena meramente descritiva, mas algo vívido, humanizado e, por isso mesmo, uma referência ao existir humano, com suas demandas e a necessidade que temos de sobreviver a todo instante às ameaças e circunstâncias que nos afligem, como o abacaxi que resiste aos golpes que cortam “as cruas / douradas puas” do seu gibão (referência à casca, uma proteção). A estrofe final é pura beleza e claridade poética ao aludir à carne do abacaxi – cortada em rodelas. A forma circular do corte “revela o sol”. A força imagética desse rondel é surpreendente, ao mesmo tempo em que o eu lírico remete a uma reflexão sobre a condição do ser humano e seu embate para sobreviver aos açoites da sorte adversa.
IV
Outro exemplo da engenhosidade do autor é a sua habilidade para transformar coisas ordinárias em motivos poéticos. Seus “Sonetos de bolso” evidenciam sua atenção e perspicácia para o detalhe, para o simples. Segunda parte de Frauta de barro , essa sequência do livro compõe-se de dez sonetos sobre pequenos objetos, usados como peças de vestuário (lenço, canivete, chaveiro, isqueiro etc), hoje já incomuns na indumentária cotidiana. O próprio autor fazia uso desses utensílios, compondo seu adereço pessoal. O fato é que esses poemas estão entre os mais singulares da poética bacellariana e nos remetem às pinturas de Vang Gogh sobre coisas cotidianas e naturezas-mortas: “Par de sapatos”, “Quarto em Arles”, “Cadeira… com cachimbo”, “Natureza-morta com bíblia”. O “Soneto da caixa de fósforos” (BACELLAR, 2011, p. 33) é exemplar nesse aspecto:
Minha cápsula de incêndios,
meu cofre de labaredas!
Meu pelotão de alva farda
e altas barretinas pretas:
se só num níquel quem vende-os
lhes aquilata o valor,
teus granadeiros da guarda
não se inflamam de pudor!
Fiat Lux do meu verso,
símbolo vivo do amor:
qualquer fricção te incendeia,
te arranca estrelas de dor,
minha gaveta de chamas
com sementes de calor.
O poema pode ser lido como um quadro em movimento, composto de fotogramas que sequenciam cenas alusivas a uma caixa de fósforos e os palitos que a compõem. O sujeito poético elege, ponto de partida de sua criação, um objeto e vai ampliando seu expectro de observação, com imagens que vão se metaforizando, compondo uma tapeçaria luminosa com variações de um mesmo tema. A riqueza imagética se afirma pelo caráter singular e a forma de expressar seu olhar sobre uma peça de uso doméstico que se define pela sua natureza utilitária, destituída de maior significado: ele a evoca poeticamente como uma “cápsula”, com um conteúdo em potência, perigoso, pois pode gerar “incêndios”. Os palitos são retratados como soldados ordenados em “pelotão”, em alusão à forma de enfeixá-los na caixa. Após fazer referência ao seu valor irrisório, o sujeito lírico surpreende-nos com a ampliação do conteúdo semântico, aludindo à incandescência do fósforo e o relacionando ao ato criativo: “Fiat Lux do meu verso”. Para o eu lírico, o poético nasce com a intensidade do enleio amoroso e se assemelha a um incêndio, bastando um pequeno gesto, uma “fricção”, para que se transfigure numa constelação de “estrelas”, nascidas quase sempre de um processo doloroso.
Van Gogh, ao representar plasticamente camponeses, objetos e utensílios do cotidiano, crianças, naturezas-mortas, ambientes solitários, cerejeiras floridas, faz uma opção estético-existencial por temas particulares e recortes do mundo com o intuito de chamar a atenção para situações do dia a dia, experiências singulares e acontecimentos sem maior significação social. Sua intenção era capturar, nesses pequenos retratos da vida, a beleza e o conteúdo de humanidade que os fundamenta. Ao mesmo tempo em que treina o olhar para perceber, nas coisas mínimas, sentidos adormecidos e indícios de nossa condição existencial, reconfigura-as plasticamente, reinserindo-as com uma vitalidade e potência transformadoras no mundo, posto que o desvela.
Martin Heidegger
Heidegger, ao refletir sobre o quadro “Par de sapatos”, de Van Gogh, buscou nesse utensílio, de uso nos afazeres humanos, a vida neles presentes, a sua existencialidade, prefigurando-o na historicidade do sujeito que dele fez uso, como argumenta no belo ensaio “Origem da obra de arte (HEIDEGGER, 2012, p. 31 ): “A pintura de Van Gogh é a patenteação originária (Eröffnung ) daquilo que o utensílio, o par de sapatos de camponês, é em verdade”. O pensador alemão considera que a criação artística tem o poder de desvelar as coisas retratadas, suas relações com o mundo e seus significados não evidentes: “A obra de arte deu a conhecer aquilo que o calçado verdadeiramente é”.
Ao pintar as surradas botas da camponesa, Van Gogh chama a atenção para o significado da vida desse ser-no-mundo, seus embates, sua luta para sobreviver, sua existência modesta, mas dignificada pelo seu trabalho com a terra, colhendo os frutos de seu labor solitário. Para Heidegger (2012, p. 30), esse utensílio, desgastado pelo uso e representado com delicadeza e verdade pelo pintor, diz-nos da vida e do personagem sugerido pela imagem: “pelo facto de nos termos posto perante a pintura de Van Gogh. Esta falou”. O filósofo amplia sua compreensão sobre essa modesta representação de um elemento particular, as botas, aparentemente destituído de valor, mas que fala com intensidade do seu dono e suas conexões com a realidade. O todo, com suas contingências e circunstâncias, revela-se no recorte do real.
Vincent van Gogh – “Par de sapatos”
Luiz Bacellar se insere nessa tradição de grandes artistas que souberam infundir, na representação do mínimo, grandeza humana e vigor estético, como se depreende da leitura de seus “sonetos de bolso”. Essa opção não era apenas um exercício de preciosismo artístico ou uma excentricidade, mas um ato criativo intencional, movido por um posicionamento ontológico e de compromisso com a dignidade humana, como a sugerir que o belo e a verdade não estão só nos grandes temas e nos cenários fascinantes e assépticos, mas também nos lugares mais simples, informes, e nas vivências das pessoas comuns e seus fazeres ordinários.
V
O livro escrito por Elson Farias, Luiz Bacellar e sua poesia , é um oportuno e justo tributo à memória desse poeta excepcional que fez da poesia a sua maneira de ser e de se comunicar com o seu tempo, e que deixou um tesouro poético e um depoimento estético e humano para a sua terra, enriquecendo a literatura brasileira com os sabores, cheiros e cores de seu canto.
Elson Farias e Luiz Bacellar
Concebido por Elson como uma homenagem, esse estudo é uma introdução à vida e à obra desse artista extraordinário – que fez de sua cidade e de sua existência o fundamento de sua criação literária. Bacellar, um rapsodo entre os escombros de seu tempo, inscreve, em versos precisos e densos, a memória de sua gente, de seu lugar e, ao mesmo tempo, testemunha seu desconsolo e irresignação diante de um tempo que se autoflagela e, indiferente, consome os sonhos e as realizações humanas. Nada escapa ao seu trotar corrosivo – enxurrada inapelável –, como enuncia o eu lírico, na segunda canção, de Frauta de barro (BACELLAR, 2011, p. 106), dedicada a Fernando Pessoa: “leva a lembrança doente / da minha vida abjeta. // Sim, abjeta e repelente / existência que se abate, / contra quem tudo contesta, / contra quem tudo combate”.
O ensaio de Elson é uma obra que resgata aspectos significativos da trajetória pessoal e literária do autor de Frauta de barro . Elson Farias (2020, p. 109-110) presta seu tributo ao amigo e aponta caminhos para estudos futuros sobre sua produção poética, como esclarece:
Minha homenagem é de tal modo simples que não ambicionei me aprofundar nos meandros de sua poética, rica em significado e beleza, num universo que suscita muita riqueza existencial e que ainda vai provocar muitos panos para as mangas.
Com este ensaio, Elson enriquece e acresce informações relevantes aos estudos sobre este que é um dos poetas mais respeitados e amados da literatura que se produz no Amazonas. Luiz Bacellar faleceu no dia 9 de setembro de 2012, cinco dias após completar 84 anos. Narciso, com os olhos voltados para o passado, o poeta vive e se presentifica nas malhas de seus versos e se prefigura nos velhos casarões, nas famílias, nos becos, nas praças, nas igrejas, no bichos, nas ruas e nos igarapés da cidade que elegeu como musa de seu canto. Canto que ecoa a memória de um tempo que se perdeu e que denuncia a insânia de um presente à deriva, alheio ao seu ao passado e ao próprio destino – como evoca na terceira variação “sobre um prólogo”, que abre Frauta de barro (2011, p. 23):
Nos longes da infância paro;
há uma inscrição sobre o muro:
Frauta clara, arroio escuro,
Fruta escura, arroio claro.
E esse cavalo capenga?
E esse espelho espedaçado?
E a cabra? E o velho soldado?
E essa casa solarenga?
[…]
São temas recomeçados
na minha vária canção.
Se a poesia é uma forma de compreensão do mundo e do fenômeno humano, então a lírica de Luiz Bacellar é uma revelação sobre o seu itinerário existencial e sobre o seu tempo – espelho em que jaz refletida sua alma e seu cântico, feito de cinza, silêncio e compaixão.
Referências
BACELLAR, Luiz. Quarteto – obra reunida. Org. Tenório Telles. Manaus: Editora Valer, 1998.
__________. Sol de feira. 6. ed. Manaus: Editora Valer, 2005.
__________. Frauta de barro. 9. ed. Manaus: Editora Valer, 2011.
__________. Quatuor – sonata em si bemol menor para quarteto de sopros. 6. ed. Manaus: Editora Valer, 2006.
HEIDEGGER, Martin. Caminhos de floresta. 2. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2012.
FARIAS, Elson. Luiz Bacellar e sua poesia. Manaus: Editora Valer, 2020.
TODOROV, Tvetan et al. Forma e sentido contemporâneo: poesia. Organização: Gil Lopes; Antônio Cícero. Rio de Janeiro: Ed.UERJ, 2012.
LUIZ BACELLAR
Seleta Poética
Luiz Bacellar nasceu no dia 4 de setembro de 1928, em Manaus. Um dos poetas mais singulares da poesia brasileira, com uma obra que se define pelo rigor poético e riqueza temática, sua poesia, identificada com o locus amazônico, em particular sua cidade de nascimento, assume um caráter universal ao problematizar a condição humana, a memória, o poético e as demandas existenciais de um sujeito lírico inquieto e questionador diante da vida. Faleceu em Manaus no dia 9 de setembro de 2012. Estreou em 1963, com Frauta de barro . É autor de Sol de feira (1973), Quatro movimentos (1975), O crisântemo de cem pétalas (1985), em parceria com Roberto Evangelista, Quarteto, poesia reunida (1998) e Satori (2000).
Esta seleta poética é uma breve apresentação de sua colheita lírica – forma de familiarizar os leitores com sua poesia.
Por Tenório Telles , poeta, editor e crítico literário
Noturno do Bairro dos Tocos
Há tanta angústia antiga em cada prédio!
Em cada pedra nua e gasta. E agora
em necessário pranto que demora
o amargo verso vem como remédio
pelos sonhos frustrados em cada hora
da ingaia infância. Madurando o tédio
nos becos turvos, porque exige e pede-o
inquieta solidão que assiste e mora
em cada tronco e raiz, calçada e muro:
Chora-Vintém, O-Pau-Não-Cessa* . Impuro
se derrama um palor de lua morta
nas crinas tristes, no anguloso flanco:
memória e angústia fundem-se num branco
cavalo manco numa rua torta.
Balada das 13 Casas
São 13 casas unidas,
são 13 casas nascidas
no mesmo lance de rua,
com as mesmas paredes-meias,
os mesmos oitões de taipa,
a mesma fachada nua
e as mesmas janelas tristes
de 13 casas na rua.
Unidas? Bem… desunidas
nos problemas dos que habitam
suas paredes estanques;
mas juntas, pelo beiral,
pelos caibros de itaúba,
pelas telhas de canal
de 13 casas na rua.
E as famílias que moravam
(ainda algumas demoram)
nos tempos do berimbau?
Lembro: Cabelo-de-Fogo,
família Boca-Medonha,
a família Macaxeira
e a família Bacurau
das 13 casas da rua.
Das 13 só restam 11:
2 foram demolidas
pra dar lugar a um convento
de padres redentoristas
que, não contentes com isso,
de Tocos para Aparecida
mudaram o nome do bairro
das 13 casas da rua.
Numa delas eu vivi,
numa outra me criei,
e talvez venha a morrer;
quanto às outras, pelos donos
foram sendo reformadas,
gente próspera e “elegante”
como atestam as fachadas
das 13 casas da rua.
Apenas esta onde moro
de casa velha coroca
conservou a identidade
ainda usa arandelas,
calhas, tabiques, escápulas,
com manias e pirraças
Soneto da Caixa de Fósforos
Minha cápsula de incêndios,
meu cofre de labaredas!
Meu pelotão de alva farda
e altas barretinas pretas:
se só num níquel quem vende-os
lhes aquilata o valor,
teus granadeiros da guarda
não se inflamam de pudor!
Fiat Lux do meu verso,
símbolo vivo do amor:
qualquer fricção te incendeia,
te arranca estrelas de dor,
minha gaveta de chamas
com sementes de calor.
Luiz Bacellar, criança, foto familiar.
O Poeta Veste-se
Com seu paletó de brumas
e suas calças de pedra,
vai o poeta.
E sobre a cambraia fina
da camisa de neblina,
o arco-íris em gravata
vai atado em nó singelo.
(Um plátano, sobre a prata
da água tranqüila do lago,
se debruça só por vê-lo).
Ele leva sobre os ombros
a cachoeira do lago
(cachecol à moda russa)
levemente debruada
de um fino raio de sol.
Vai o poeta
a caminhar pelas serras.
(pelos montes friorentos
mal se espreguiça a manhã)
com seu pull over cinzento
(feito com lã das colinas)
com seus sapatos de musgo
(camurça verde dos muros)
com seu chapéu de abas largas
(grande cumulus escuro).
Mas algo ainda lhe falta
Para a elegância completa:
Súbito pára, se curva,
num gesto sóbrio e perfeito,
um breve floco de nuvens
colhe e prende na lapela.
Duas canções II
A Fernando Pessoa
Vai barquinho de papel
pelo enxurro da sarjeta,
leva a lembrança doente
da minha vida abjeta.
Sim, abjeta e repelente
existência que se abate,
contra quem tudo contesta,
conta quem tudo combate.
Tudo combate e contesta
este existir ilusório,
triste como um fim de festa
e um começo de velório.
Luiz Bacellar e Tenório Telles
Rondel X do Abacaxi
Com teu cocar
de verdes plumas
feroz de aprumas
para lutar:
feres a mão
que corta as cruas
douradas puas
do teu gibão;
abacaxi,
topázio agreste,
cristal-farol:
cada rodela
da tua polpa
revela o sol
Haicais
No centro da grama
seca da campina
o girassol resiste.
Perdido na grama
o grilo responde
ao canto do pássaro.
O brilho do salto
do peixe na cascata
lâmina de prata.
Relâmpago.
Trovão, vento, chuvisco.
A saída da lua.
Da flor o orvalho
nas pétalas: tua face
depois que choraste.
O mar está bravo.
Bate, e enfurecido,
canta nos rochedos.
(O poeta)
Sempre perseguido
o grilo fica tranquilo
cantando escondido.
Fotos: Reprodução/Tenório Telles