Neuton Corrêa**
Domingo, após deixar o 422 para repetir o que faço desde que cheguei à capital (pegar encomenda no barco e receber gente querida), flagrei-me filosofando sobre o tempo. Imagina que o tempo era coisa da cabeça do homem.
Ocorreu-me isso depois que passei a observar cenas, cenários e personagens que habitam a Manaus Moderna. Nada diferente do dia 16 de novembro de 1989, quando a Manaus Moderna ainda era a Manaus Antiga.
Antes de seguir a narração, convém um parêntese para um registro histórico. A Manaus Moderna ainda se chamava Porto da Escadaria dos Remédios.
Por ali, desde o século 19, também desembarcou parte da riqueza explorada da floresta e do povo da região para ostentar o luxo dos senhores e senhoras da borracha.
Pois bem, naquele dia, não havia entrado em nenhum portal do tempo nem mesmo imaginado coisas, mas o passado ainda permanecia presente: um homem, de cócoras, banqueteava-se ao lado de uma lixeira de cheiro insuportável para muitos.
Do outro lado da montanha das sobras da feira, uma humilde mulher de cabelos brancos, com uma criança de vestido encardido, catava cebola, tomate e repolho para colocar em um carrinho de mão.
À beira do rio, oito homens, velhos e jovens que discutiam entre si, colocavam lenha em uma fogueira que cobria com suas labaredas uma panela de pressão mais preta do que o negro do rio que passava a dois metros deles.
Enquanto aguardavam a comida, revezavam-se à boca de uma garrafa de aguardente.
Um pouco mais distante, sentado, um homem tomava banho nas águas grossas do lixo jogado pelos barcos que atracam naquele porto.
Ele escondeu as intimidades até onde pôde, mas, ao deixar o rio, teve que exibir a nudez para vestir a mesma roupa que tirou antes de entrar na banheira.
Assim que penteou os cabelos, pegou as muletas e foi-se juntar ao bando de bêbados que cercava a panela e a garrafa de Corote.
Tentei ouvir o que os “orelhas secas” (assim eles são conhecidos) discutiam, mas entre eles e mim, que estava no parapeito de uma das escadarias enferrujadas, um caminhão atolado na lama do esgoto roncava alto.
O motorista tentou de tudo, mas desistiu. Bom para os carregadores contratados para substituir com tração humana o que os motores fariam com pouco esforço.
O atoleiro do caminhão também foi bom para um rapaz que se peava com mochila, cintos e coletes cheios de bolsos e uma câmera fotográfica como um canhão apontado para os homens que, lentamente, escalavam as rampas íngremes carregados de sacas e mais sacas de macaxeiras.
O fotógrafo mirou e clicou de todo jeito e ainda pediu um sorriso dos carregadores que riam, mas talvez da atitude do retratista.
O navio moto Novo Aliança (em que vinham minha irmã, minha farinha baguda e alguns amigos), previsto para atracar às 9h, já estava atrasado e, quando eu estava para perder a paciência, uma moradora do porto sai debaixo de uma tenda de papelão, gritando com alguém que acabara de lhe importunar: “Sai daqui, animal, tu quer é pegar HIV!”.
Antes de receber a embarcação, que já estava aportando, por simples reflexo, olhei para as ruínas da arquitetura inglesa do mercado Adolpho Lisboa e vi o nome de uma loja que poderia ser a definição do lugar: “Casa fim do mundo”.
* A poesia do homem cavalo/Editora Valer, 2012.
** Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Ufam.