Melzinha e Segundinho

A Mel chegou em casa ainda bebรช: fofinha, chorona, tola e manhosa. Uma dessas manias nunca perdeu: esparramar-se ao chรฃo atรฉ que alguรฉm a carregasse

Melzinha e Segundinho

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 12/11/2011 ร s 00:00 | Atualizado em: 10/10/2023 ร s 15:12

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Neuton Corrรชa*

A Mel chegou em casa ainda bebรช: fofinha, chorona, tola e manhosa. Uma dessas manias nunca perdeu: esparramar-se ao chรฃo atรฉ que alguรฉm a carregasse. Nem gritos para repreendรช-la nem palminhas davam jeito. Era uma menina cheia de vontade.

A Mel foi a companhia e o xodรณ de meu filho, Neuton 2ยบ, em curtรญssimos dez anos. Fotos de um รกlbum sรณ dela registraram a amizade e a cumplicidade em peraltices que juntos aprontavam. Em uma dessas imagens, apareรงo dormindo numa rede e os dois atrรกs de mim fazendo chifrinhos.

Ela sentia minha presenรงa a distรขncia. Minha esposa cansou de ganhar apostas, observando a Mel anunciar que eu estava chegando. Bastava ela levantar a cabeรงa e correr para o portรฃo, barulhando as unhas no piso que a Darci dizia: โ€œO passageiro-repรณrter estรก chegando! Quer ver?โ€. E, minutos depois, a visรฃo se confirmava.

Mas a vida da Mel nรฃo foi sรณ de maravilha. Em 2006, por descuido, perdemos nossa parceirinha. Ela foi raptada num domingo de muita tristeza para a famรญlia. E reanimou a casa cinco meses depois, pulando e batendo no portรฃo num domingo inesquecรญvel. Era Dia das Mรฃes e ela foi o melhor presente que se poderia dar e receber naquela data.

O Segundinho ainda estava dormindo quando ela retornou, mas nรฃo perdi tempo em avisรก-lo. Os olhos dele brilharam nublados, como num dia de Sol e chuva. Nesse dia de choro de alegria, o Segundo atรฉ dispensou brincar com outros colegas.

Mas a Mel nรฃo chegou tรฃo bem. Deu apenas um sorriso, parecendo ter agradecido a calorosa recepรงรฃo que recebera, porรฉm, depois da festa, mergulhou numa profunda depressรฃo. Ela se recolheu a um cantinho e por cerca de dois anos nรฃo se ouvia nenhum barulho da Mel. Eu atรฉ achava que ela havia ficado muda.

A รบnica coisa que fazia, quando a gente se aproximava dela, era colocar a mรฃozinha direita em seu rostinho, baixando a cabeรงa e tremendo os olhinhos. O dia em que voltou a falar foi outra festa para nรณs. Daรญ em diante, recobrou o รขnimo e atรฉ a mania de se jogar no chรฃo voltou a usar, dessa vez acrescentando uma submania: colocar a lรญngua pra fora.

A vida, no entanto, reservara-lhe outro problema. Aos poucos, foi perdendo a visรฃo e, nos รบltimos anos, percebemos que ela sรณ andava se orientando (e muito bem) pela pontinha do focinho.

Ah, jรก ia esquecendo. Mas a Mel tambรฉm era companhia de minha sogra, a Dinoca. E se tratavam como gente grande.

Na semana passada, no Dia de Finados, a Mel se despediu deste mundo e nos รบltimos momentos de sua vida tentei confortรก-la, mas nรฃo conseguia. Seus suspiros finais sopravam em meus olhos uma profunda certeza do adeus. Do nunca mais.

O Segundo nem quis ver o passamento dela, e eu, para fingir ser forte, na frente de parentes e amigos que estavam em casa, fiz uma sussurrada despedida, erguendo uma represa para conter a correnteza que se formava em mim.

Mas, amigas e amigos do busรฃo, a รกgua represada transbordou em meus olhos esta semana, quando peguei o busรฃo, acessei o Facebook pelo meu telefone e abri um post que o Segundinho acabara de publicar.

Lรก estava a foto da Mel esparramada ao chรฃo de barriga para cima, com as patinhas no peito, os olhinhos entreabertos, fazendo carinha de tolona. E, abaixo da foto, ele escreveu: โ€œUma cadelinha feliz, uma boa menina. Assim termina sua vida. Sentiremos muito sua falta, Melzinhaโ€ฆโ€

*Filรณsofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazรดnia/Ufam.