Neuton Corrêa*
A Mel chegou em casa ainda bebê: fofinha, chorona, tola e manhosa. Uma dessas manias nunca perdeu: esparramar-se ao chão até que alguém a carregasse. Nem gritos para repreendê-la nem palminhas davam jeito. Era uma menina cheia de vontade.
A Mel foi a companhia e o xodó de meu filho, Neuton 2º, em curtíssimos dez anos. Fotos de um álbum só dela registraram a amizade e a cumplicidade em peraltices que juntos aprontavam. Em uma dessas imagens, apareço dormindo numa rede e os dois atrás de mim fazendo chifrinhos.
Ela sentia minha presença a distância. Minha esposa cansou de ganhar apostas, observando a Mel anunciar que eu estava chegando. Bastava ela levantar a cabeça e correr para o portão, barulhando as unhas no piso que a Darci dizia: “O passageiro-repórter está chegando! Quer ver?”. E, minutos depois, a visão se confirmava.
Mas a vida da Mel não foi só de maravilha. Em 2006, por descuido, perdemos nossa parceirinha. Ela foi raptada num domingo de muita tristeza para a família. E reanimou a casa cinco meses depois, pulando e batendo no portão num domingo inesquecível. Era Dia das Mães e ela foi o melhor presente que se poderia dar e receber naquela data.
O Segundinho ainda estava dormindo quando ela retornou, mas não perdi tempo em avisá-lo. Os olhos dele brilharam nublados, como num dia de Sol e chuva. Nesse dia de choro de alegria, o Segundo até dispensou brincar com outros colegas.
Mas a Mel não chegou tão bem. Deu apenas um sorriso, parecendo ter agradecido a calorosa recepção que recebera, porém, depois da festa, mergulhou numa profunda depressão. Ela se recolheu a um cantinho e por cerca de dois anos não se ouvia nenhum barulho da Mel. Eu até achava que ela havia ficado muda.
A única coisa que fazia, quando a gente se aproximava dela, era colocar a mãozinha direita em seu rostinho, baixando a cabeça e tremendo os olhinhos. O dia em que voltou a falar foi outra festa para nós. Daí em diante, recobrou o ânimo e até a mania de se jogar no chão voltou a usar, dessa vez acrescentando uma submania: colocar a língua pra fora.
A vida, no entanto, reservara-lhe outro problema. Aos poucos, foi perdendo a visão e, nos últimos anos, percebemos que ela só andava se orientando (e muito bem) pela pontinha do focinho.
Ah, já ia esquecendo. Mas a Mel também era companhia de minha sogra, a Dinoca. E se tratavam como gente grande.
Na semana passada, no Dia de Finados, a Mel se despediu deste mundo e nos últimos momentos de sua vida tentei confortá-la, mas não conseguia. Seus suspiros finais sopravam em meus olhos uma profunda certeza do adeus. Do nunca mais.
O Segundo nem quis ver o passamento dela, e eu, para fingir ser forte, na frente de parentes e amigos que estavam em casa, fiz uma sussurrada despedida, erguendo uma represa para conter a correnteza que se formava em mim.
Mas, amigas e amigos do busão, a água represada transbordou em meus olhos esta semana, quando peguei o busão, acessei o Facebook pelo meu telefone e abri um post que o Segundinho acabara de publicar.
Lá estava a foto da Mel esparramada ao chão de barriga para cima, com as patinhas no peito, os olhinhos entreabertos, fazendo carinha de tolona. E, abaixo da foto, ele escreveu: “Uma cadelinha feliz, uma boa menina. Assim termina sua vida. Sentiremos muito sua falta, Melzinha…”
*Filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam.