Deílson Trindade*
Ilustrações: Enãn Nogueira
Nesta narração recupero duas lembranças da minha infância. Talvez pareçam banais, mas elas sempre acompanharam a minha vida: uma, quando imaginei meu pai governador, e outra, quando vi uma garrafa de Coca-Cola pela primeira vez.
Quando nasci, o País estava em festa, era a copa do mundo na antiga Alemanha Ocidental.
Sou o penúltimo filho de uma família de dez irmãos. Minha mãe é uma dona de casa que, apesar do pouco estudo, jamais errou na matemática ao multiplicar a pouca comida para então dividi-la em doze pratos, tendo ainda que subtrair um pouco para o jantar.
Meu pai foi mestre carpinteiro e marceneiro e, por ser de baixa estatura, era chamado de Mestrinho.
No ano das eleições gerais, no final do regime militar, quando era presidente o general João Batista Figueiredo, não havia televisão na minha casa, então, ouvia-se aquela euforia pelo rádio: os candidatos falavam suas histórias de lutas e cassações.
Nos postes e muros da cidade de Parintins (AM), cartazes apresentavam os rostos que o rádio não revelava e um deles era especial para mim. Havia um rosto arredondado, típico do homem amazônico, cabelos lisos penteados para trás, bigode fino, peculiar da virada do século 19. Seu nome era Gilberto Mestrinho, ou simplesmente Mestrinho.
Eu imaginava que o meu pai fosse candidato ao governo do Estado. Não somente pela coincidência do nome Mestrinho, mas pela semelhança dos rostos. E quando meu pai me colocava na garoupa de sua velha bicicleta e me levava pelas ruas empoeiradas para a marcenaria em que trabalhava, eu ficava feliz ao ver pelo caminho os cartazes colados nos muros, casas e postes de toda Parintins.
Estava lá: Mestrinho, governador! Para mim, eu era nada menos que o filho do governador do Estado do Amazonas.
O outro fato que marcou minha infância ocorreu quando eu tinha a idade de ser enviado à caserna, como se fosse um menino espartano. Isso aconteceu em uma manhã, na praça Eduardo Ribeiro, também na cidade de Parintins. Como não sabia o nome da praça, à época, chamava-a apenas de praça da prefeitura.
Naquele dia, o sol estava radiante, devia estar próximo à hora do almoço, uma multidão se aglomerava para ouvir um homem falar num pequeno coreto, enquanto sua esposa o acompanhava protegida por um guarda-sol.
Uma multidão rodeava aquele homem que parecia ser importante. Não conseguia chegar perto nem ver o que estava acontecendo. Fiquei angustiado. Então, meu irmão, que era mais velho e estava comigo, começou a narrar: o homem era o prefeito da cidade e estava inaugurando alguma coisa.
Foto: Wilson Nogueira
E o que ele disse durante a inauguração não faço a menor ideia. Mas lembro de meu irmão ter falado que a primeira-dama da cidade estava segurando uma garrafa de Coca-Cola.
Já havia tomado refrigerante antes, pelo menos uma vez por ano, no Natal. Meu pai comprava o que era mais acessível a ele, mas nunca havia tomado uma Coca-Cola, aquele refrigerante não nos pertencia.
Imaginei como seria tomar uma Coca-Cola, aquela garrafa geladinha, o sabor refrescante para afastar o calor, o líquido passando pelo canudo e a possibilidade de tomar mais outra.
Não consegui mais olhar para outro lado, aquela garrafa me hipnotizava e, de repente, não havia mais ninguém, somente eu e o desejo de experimentar tais sensações. Tudo era tão mágico, pois a felicidade de uma criança estava depositada em uma garrafa de vidro. Então pensei: um dia ainda vou tomar uma Coca-Cola e desvendar seu sabor.
Esses dois episódios não saíram de minha cabeça, mas a vida prosseguiu. Do ano em que ocorreu o atentado ao Riocentro ao ano do massacre de Vigário Geral foram tempos felizes que se contrastaram com esses episódios tristes.
Nesse período, em Parintins, estudei no Colégio Nossa Senhora do Carmo, vendi picolé, fui coroinha da igreja e ajudei meu pai na marcenaria. Na Nova República surge o meu interesse pela História, mas cursar uma licenciatura pareciam lutas de heróis ou semideuses, como aquelas narradas por Homero.
Eu já sabia, não era mais o filho do governador, mas tinha sede de conhecimento, de desvendar seu sabor, como aquela Coca-Cola que nunca havia provado na infância.
Quando Ossama Bin Laden escreveu a história como o terrorista que desafiou a América ao explodir o World Trade Center, eu entrava para a universidade explodindo de alegria, afinal estava cursando Licenciatura em História que, aliás, não foi fácil, pois tive que abdicar de muitas coisas e me distanciar de outras: lazer, amigos, família.
As escolhas eram necessárias, a aposta era grande, e a esperança maior ainda. Tanto que larguei meu trabalho de marceneiro e fui viver de uma bolsa de estudos, um salário mínimo, e da “bolsa família”: meu pai e minha mãe me ajudando com o pouco que tinham.
Conclui a graduação no ano em que os jornais não paravam de noticiar o mensalão. Houve festa, baile. Pude compartilhar esse momento com minha mãe, minha esposa e meus filhos.
A felicidade só não foi completa pela ausência na cerimônia de uma grande personalidade: o Mestrinho, não aquele da política, que governou o Amazonas por três vezes, mas o meu pai, que estava doente e teve que ficar em casa.
Ele também foi um grande governador, pois com poucos recursos que tinha, deu aos filhos educação, saúde, moradia, trabalho, segurança e um pouco de “assistencialismo” também.
Um novo ciclo estava se iniciado, eu já não era mais o marceneiro que aprendeu o ofício com o pai e que apostou na educação e no conhecimento para superar os obstáculos da vida.
Fiz especialização, mestrado e doutorado e durante essa trajetória, no ano em que Fidel Castro renunciou à Presidência de Cuba, no dia de São Jorge, o santo guerreiro, meu pai, o Mestrinho, também outro guerreiro, perdia a batalha contra a insuficiência renal provocada pela diabetes crônica e não pôde acompanhar meu crescimento.
Nem sei se entenderia a minha nova jornada, pois nunca entendeu os motivos que me levaram a fechar a velha marcenaria, que consumiu anos de sua vida e que com muito gosto me ofereceu para que pudesse dar continuidade à profissão herdada por ele de meu avô.
Hoje, mesmo tendo uma vida estabilizada, podendo tomar quantas Coca-Cola desejar, esses dois episódios ainda permanecem vivos em minha memória. Meu pai, o Mestrinho, foi justamente homenageado. A sala de estudos de minha casa leva seu nome, com direito a placa com foto e histórico pendurados na porta de acesso e festa de inauguração.
E aquela Coca-Cola que nunca tomei na infância, e que por muito tempo me deixou frustrado, hoje é o incentivo para a luta por meus ideais. E a cada batalha vencida, a cada nova conquista, eu brindo, claro, com uma Coca-Cola.
*Doutor em Sociedade e Cultura na Amazônia e professor do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Amazonas (Ifam).