Wilson Nogueira, especial para o BNC Amazonas
“Se um dia tiver que escolher entre o mundo e o amor. Lembre-se… Se escolher o mundo, ficará sem o amor, mas se escolher o amor, com ele conquistará o mundo”
Albert Einstein
Todas as madrugadas começam no meu quintal.
Se não começam, verdadeiramente, mas devem começar em algum quintal ou em todos os quintais.
Penso que não falo só.
Inspiro-me em Albert Einstein, no cosmo relativo.
Inspiro-me em João Cabral de Melo Neto, que nos explica, por meio da sensibilidade humana, que ainda nos resta em tempos obscuros, que “um galo sozinho não tece uma manhã.”
Assim, amanheço com o corococóóó… do galo que começa tecer as manhãs do mundo.
Ele mora num galinheiro que fica bem próximo do quarto em que durmo.
Sinto-me um ser privilegiado por isso.
Às quatro da manhã, o seu cantar forte, elegante, se impõe sobre o som metálico dos motores dos ônibus, das motocicletas de descargas curtas, das carretas que se sacodem com estardalhaço nas costelas-de-vaca e na buraqueira das ruas.
Seguem-se outros galos, primeiro os do meu quintal – uns ainda jovens, com canto em formação, meio desafinados.
Ó! Cantou um em São Francisco, outro na Cachoeirinha, outro no Japiim, outro em Petrópolis…
E daí seguem-se os galos… até a luz inscrever-se como manhã.
O canto que começa no meu quintal me faz viajar para muitos lugares vividos e imaginados.
Para a infância, por exemplo.
Ouvia, nessa época, no mundão rural, o cantar dos galos sem o roncar das máquinas que hoje (quase) dominam o mundo urbano.
O canto de um galo não era apenas um canto perdido na sonoridade perversa.
Era o relógio do mundo, feito de um ritmo biológico compartilhado com outros seres, entre os quais os humanos.
Logo após o galo cantar, ouvia-se o machado do sêo Tertulino rachando madeira para fazer o fogo; em seguida, o belembelém da colher roçando a panelinha cheia de café fresco, no ritual do adoçamento.
Sêo Tertulino flagrava o pôr do sol flutuando nas águas do lago.
O velhinho caniceiro só retornava, com os seus peixes ainda se estrebuchando, quando o sol já estava para se deitar.
Anos e anos: Cocorococóóó…..Belenbelém, belembelém…
E assim era, e assim é: as madrugadas sempre se iniciam no meu quintal, com esse galo, que sempre imagino ser o mesmo de sempre, o tecedor das madrugadas.
Acordando o sêo Tertulino, me acordando, acordando o meu vizinho, o vizinho do meu vizinho… acordando o mundo…
É esse galo que nos faz acordar do sono, inclusive do sono da vigília, e nos alerta para a necessidade de juntos saudarmos as manhãs com o vigor do recomeço.
Nunca foi tão necessário acordar cedo, com o cantar dos galos.
Sem ouvir os galos, a escuridão pode se prolongar e as manhãs não amanhecerem.
A língua da natureza dos galos ensina que o viver, metaforizado no cantar, precisa ser compartilhado para tornar o canto de todos os viventes.
A língua dos galos ensina que, para se iniciar a tessitura do canto de cada madrugada, alguém deve começá-la espontaneamente, sem esperar outros galos.
No dia que o galo do meu quintal partir, por determinação de forças imponderáveis, ou parar numa panela de barro, outros galos já terão aprendido a cantar com desenvoltura, inclusive os frangotes de cantos desconcertantes, e as manhãs sempre poderão se renovar.
Se renovarão com a passarada largando o ninho, com as multidões abandonando as tocas, com a escuridão se recolhendo, com um novo mundo se reerguendo.
Tecendo a manhã
João Cabral de Melo Neto
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão