Neuton Corrêa*
Todo mundo se assustou com o grito desesperado do rapaz: “Ai! Ai! Motorista, pelo amor de Deus, pára o ônibus! Pára! Pára! Pára!”. O drama não comoveu ninguém. Ainda houve quem tivesse vontade de tirá-lo da viagem à base de pontapé. Ele merecia. Estava gaiato demais.
Quem não merecia isso era a passageira que costuma fazer integração no mesmo ponto onde desço para também pegar outra linha, perto da igreja de Nossa Senhora de Nazaré, na rua Recife. Conhecia-a de vista. Fina e branca como uma vela. Nunca a vi conversar com ninguém. Naquele dia, porém, ela resolveu me pedir socorro.
Notei a diferença em seu comportamento ainda na parada. Estava agitada. Olhava para rua para ver se o 215 ou o 001 davam sinal. Cruzava as pernas de um lado para o outro. Fechava o olho e suspirava profundamente ao mesmo tempo em que colocava as mãos sobre a blusa amarela para massagear a barriga.
Nosso ônibus apareceu. Perguntei se conseguiria subir e ela respondeu que sim. Quando voltei a olhá-la, ela se esforça para trocar os passos, apertando as coxas até o joelho. Outra pessoa lhe ofereceu ajuda e ela respondeu: “Já está passando. Vai dá para agüentar.”
Foi nesse momento que me lembrei do gaiato.
Aliás, quem nunca passou por um aperto? Vivi uma situação dessas num articulado, o 672. Foi logo que me mudei para o endereço onde moro hoje. O quintal da casa era repleto de mamoeiro. Num dia, quis dar uma de bacana. Fiz um café da manhã com as frutas do terreno. Tracei meia dúzia de fatias de mamão e saí para resolver as burocracias da compra da casa.
Três horas mais tarde, no 672, veio o “efeito mamão”. No primeiro sinal leve, achei que era coisa passageira. No segundo, perto do Amazonas Shopping, a coisa piorou. Quando o ônibus retornou pela Constantino Nery, fiz todos os cálculos e achei que poderia descer no Bosque Clube e lá pedir socorro. Não deu! O motorista não atendeu à chamada! A coisa apertou! No ponto seguinte, desci e corri para me esconder em uma moita, onde resolvi o problema.
Mas, em nenhum momento, assim como aquela mulher magrinha, brinquei com coisa séria. Aliás, com isso não se brinca.
Ao contrário, o gaiato brincou. Foi em uma viagem para a Festa do Leite, em Autazes. Ele integrava um grupo de três rapazes, na faixa dos 20 anos: Todos vestiam camiseta, bermuda, tênis da moda com meia branca erguida até a canela. O mais claro deles, era baixinho e gordinho; outro tinha traços indígenas, principalmente no olho e no cabelo, tanto que era chamado de “macu” pelos colegas.
O terceiro era ele, o gaiato. Não era tão alto, mas era maior que os dois amigos. Suas principais marcas eram a careca, que já começava a aparecer no meio da cabeça, e os olhos e os cílios grandes, cobertos por uma sobrancelha que emendava a da direita com a da esquerda. Fez as primeiras graças ainda em Manaus. Na viagem, pulava e gritava quando o ônibus enfrentava a buraqueira da pista.
Já em Autazes vi os três na praça da cidade bebendo, paquerando e comendo tracajá, que antes era vendido em bancas de churrasco. Pela manhã, estavam no parque de exposição. Tomaram leite, beberam coalhada e se empurraram no queijo. À tarde, no domingo, pouco antes do retorno, estavam com uma lata de conserva de carne.
Na subida do ônibus, duas moças se insinuam para os três jovens. O gaiato aceita a provocação e troca olhares com as meninas. Tudo dava certo para ele, até que, de repente, as coisas começam a mudar: um vapor estranho toma conta do ônibus e todo mundo começa a abanar o nariz com a mão. O sobrancelhudo grita:
– Manda rezar uma missa para tua alma, desgraçado, que teu corpo já está podre!
Cinco minutos depois a situação se repete e ele ameaça:
– Se eu pego esse filho da mãe, eu mato. Pô, man, pede para fazer o serviço lá fora.
Mais cinco minutos! O paquerador se levanta, as meninas se animam, passa por elas, dá um sorriso amarelo e depois, desesperado, apela:
– “Ai! Ai! Motorista, pelo amor de Deus, pára o ônibus! Pára! Pára! Pára! Pelo Amor de Deus, motorista!”.
Depois disso, ainda interrompeu a viagem mais três vezes.
*Filósofo, estudante de jornalismo, mestrando em Sociedade e Cultura/Ufam.
Ilustração: Carlos Myrria.