Wilson Nogueira (Texto e fotos)
A segunda edição do livro Para aquém ou para além de nós: uma contribuição do pensamento primitivo ou bárbaro no pensar do futuro (Valer/Manaus ), da filósofa Neiza Teixeira, será lançada nesta quinta-feira (28/02), às 18h30, na Livraria Leitura, no Amazonas Shopping, segundo piso. A editora informou que, em relação à primeira edição, foram feitas algumas alterações projeto gráfico, como na capa, na qualidade do papel e inclusão de ilustrações.
A autora explica que, mesmo formada nos cânones da Filosofia ocidental, sempre procurou compreender o pensamento “primitivo” ou “bárbaro” como conhecimento necessário para uma nova tomada de consciência do mundo, diferentemente do mundo individualista e consumista.
O diálogo da filosofa é, principalmente, com as visões de mundo do povo dessana, do alto rio Negro, no Amazonas. “O que nos pode oferecer um povo que se orienta pelo mito vivo, que compreende a temporalidade diferente da que nós compreendemos; que habita um espaço em que o sagrado e o profano se manifestam em qualquer tempo ou espaço diante de um indígena”, salienta. Ler entrevista abaixo.
O coordenador editorial da Valer, Tenório Telles, acentua, na orelha da obra: “A autora adota uma atitude de questionamento em relação aos modelos tradicionais de reflexão e confronta a tradição reinante na filosofia – fundada nos padrões e referenciais europeus […] É um livro desafiador e estimulante em termos da reflexão sobre os impasses do conhecimento e do esvaziamento dos seus fundamentos subjetivos e simbólicos”.
O prefaciador da obra, o professor poeta João de Jesus Paes Loureiro acentua que Neiza Teixeira compartilha com ele o fato de compreenderem “a cultura amazônica e sua relação com a cultura mundo, como produtora de conhecimento para além de si mesma […] uma cosmovisão que vê o mundo como sabedoria e maravilhamento, onde a lógica onírica é a uma forma epistemológica do estar-compreender o mundo”.
Na verdade, diz Paes Loureiro, “o livro de Neiza Teixeira torna o além e o aquém de nós incorporados em nós”, e explica que “a percepção do mito, que é produto de uma cultura, volta-se sobre ela a cada época, para fecundá-la”, e assim o aquém e o além tornam-se o aqui e o agora.
Paes Loureiro, professor aposentado da UFPA, é autor, entre outras obras, de Cultura Amazônica: uma poética do imaginário, um dos clássicos das ciências sociais e humanas na Amazônia.
[ENTREVISTA]
Arquivo da autora
“O pensamento moderno não dá mais conta do que vivemos”
O título da obra já remete o leitor a uma reflexão profunda. Em que momento a senhora se decidiu por ele?
Antes é necessário falar sobre as condições em que eu o escrevi. Eu morei durante bastante tempo fora do Brasil. Em Portugal fiz o curso de Mestrado e Doutorado, depois morei na Alemanha, um pouco na França.
A convivência com culturas diferentes, e sentindo que meu comportamento e a forma como eu compreendia as coisas distavam bastante das pessoas com as quais eu convivia, levaram-me a pensar constantemente sobre as minhas origens.
Assim, durante o Mestrado e Doutorado, além da dissertação e da tese, por exemplo, escrevi alguns artigos sobre os povos amazônicos e as suas relações com o pensamento ocidental europeu.
Nesse período, escrevi, dentre outros: Como Yebá Buró, Senhora dos Enfeites, e Eva, que comeu a maçã, são mulheres , Ode aos peitos caídos , A dor e o sofrimento: uma leitura do mito cosmogônico da Gente do Universo ou do povo Dessana ; Sabe bem caqui ou diospiro .
Eu esbocei o livro quando estava morando na Alemanha, na cabeça ele estava estruturado, pronto, mas somente quando estive três meses na França, ele ficou, de fato, acabado. Durante o inverno de 2010, pelo período de dezembro a março, todos os dias eu ia para a Bibliothèque Publique d’Information, de 10 às 22h, no Centre Georges Pompidou, em Paris, para escrever.
Lá pude dispor de uma excelente bibliografia, com a qual eu pude realizar este trabalho. O título veio de imediato, pois a questão era saber – como um povo que vivia contrário ao que a cultura europeia-ocidental havia concebido como verdadeira forma de viver, poderia contribuir para um pensar novo, pois, apesar de todas as conquistas do Velho Mundo, podemos observar ou sentir um profundo vazio nas pessoas e mesmo na imponência da sua arquitetura.
Portanto, não foi difícil, naquele contexto, refletir se os povos que vivem em comunidades, em contato forte com a Natureza estão “aquém” ou “além” de nós. Acrescento que, sobretudo a cidade de Paris, me levava a pensar sobre os povos indígenas da Amazônia.
Fale-nos um pouco sobre a recepção da primeira edição e das suas expectativas para esta segunda?
Este é um livro que não é fácil “arquivá-lo” numa única área de conhecimento, pois ele faz um percurso pela cultura ocidental, desde Homero e Hesíodo, a Bíblia , a autores contemporâneos, tanto na Filosofia, como na Arte, na Literatura, na Antropologia e outras.
Quando o Tenório Telles interessou-se em publicá-lo, confesso que fiquei extremamente feliz, porque entendi que estava na sua hora, visto que vivíamos um período de acaloradas discussões sobre o meio ambiente, aquecimento global, “desarquivamento” do conhecimento, crises globais na economia, na sociedade, no pensamento. Então, ele chegava num contexto propício.
Um dos motivos de prazer é saber que ele está sendo lido na Universidade do Amazonas, inclusive é utilizado nos mestrados e doutorados; algumas pessoas que o encontraram nas livrarias fizeram questão de expressar a satisfação em lê-lo, inclusive, veio uma senhora do Rio de Janeiro visitar-me na Editora Valer, para agradecer-me pelo livro.
Quanto a esta edição, as minhas expectativas são boas, pois o livro está muito bonito, a capa traz um detalhe de uma peça de Gaugin, o papel é reciclado, atendendo a uma das preocupações do livro, que é um mundo sustentável para todos.
Nesse texto, a senhora lança à filosofia Ocidental um desafio: o desenvolvimento de um diálogo com o pensamento “mítico vivo” e, consequentemente, o seu reconhecimento fundamentado em sua cosmovisão. Quais são as bases filosóficas dos seus argumentos?
É extremamente difícil, senão impossível, a apreensão de um pensamento que não seja aquele em que nascemos, falamos a Língua, compreendemos a ligação seminal entre o Dizer e a Coisa. Assim, não tem como apregoarmos um pensamento puro, o que temos são aproximações. É aqui que me situo.
Desde Nietzsche que conhecemos os limites do nosso pensamento, como também os limites que se impõem à Palavra. Assim, mais acentuada, ainda, se torna a crise do pensamento e da nossa relação com o mundo após ele. Compreendemos que vivemos um momento de transição, estamos no meio da “ponte” (vejamos “O grito”, de Munch) o pensamento Moderno não mais dá conta do que vivemos, do que acreditamos, portanto, é o momento fértil para a emersão de outros pensares.
Com Heidegger, temos a poesia como o caminho para o retorno ao pensamento. Eu acrescento que também temos a Arte e o diálogo com outras cosmovisões. Portanto, é essencial o diálogo com o outro .
E ele não é mais o diferente, o exótico, mas o Necessário. A questão é procurar onde eles tecem o “nó”, é o que faço no livro que estou escrevendo. Para aquém ou para além de nós… É o início da minha caminhada.
“O silêncio é o tudo que fala, portanto é ouvir a sua voz.”
Um provável reconhecimento do pensamento mítico pelo conhecimento ocidental a essa altura implicaria quais mudanças no mundo contemporâneo?
Neste momento, é sobretudo saber ouvir. Abaixar-se, serenamente encostar o ouvido no chão para ouvir a Mãe-Terra. Depois, voltar-se para o que o mundo ocidental europeu produziu e produz. O momento é de diálogo. O silêncio é o tudo que fala, portanto é ouvir a sua voz.
Quais seriam as ações que poderiam conduzir a Filosofia à uma universalização nos termos que a senhora propõe no livro?
Esta é uma ideia que empresto de Mircea Eliade: a Filosofia Ocidental precisa universalizar-se. Isto significa que ela precisa ouvir os povos ditos “primitivos” ou “bárbaros”, numa alusão ao entendimento grego. Somente assim faríamos “aproveitamento” da libertação das diferentes cosmovisões existentes.
E os seus contatos com com o povo dessana se deu de que forma?
Há tempos, ganhei da amiga Marilina Bessa, professora da Ufam, o livro Antes o mundo não existia , dos Lana, pai e filho. Este livro tornou-se, para mim, um talismã, um tesouro. Desde então, o povo Dessana faz parte da minha vida.
Confesso que não falo nenhuma língua indígena, o que é uma limitação, mas tento compensar escrevendo com sangue, conforme Nietzsche. Não visitei os Dessana, mas eles vivem em mim. Posso dizer que também sou eles, os Tukano, os Baniwa, os Tariano, os Sateré e outros. Eu ouso dizer que pertenço ao pensamento. É ele que me dá ao mundo e me dá o mundo.