Pela brecha, vi o mundo

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 20/11/2010 às 00:00 | Atualizado em: 20/11/2010 às 00:00

 

Ivânia Vieira*

Com que olhos eu olho os negros daqui e de lá? Com que olhos eu olho os indígenas? Com que olhos eu olho os pobres do meu País e os pobres do mundo? Com que olhos eu olho os idosos, aqueles e aquelas que têm outra orientação sexual, que têm uma outra orientação religiosa?

Meus olhos, meu corpo e minha fala foram educados para entender como natural a desigualdade, a dominação de uns poucos sobre tantos; para aceitar os argumentos da intolerância como parte da norma social. Ensinaram-me, desde muito pequena, que uns teriam de meter os pés no barro para alcançar a escola mais próxima e mais precária ou jamais alcançá-la, e outros teriam a melhor escola a sua disposição; ensinaram-me que negros e índios eram gente menor, incapazes, nascidos para servir a alguns senhores e morrer como indigentes quando não assassinados. Ensinaram-me na escola e na igreja sobre uma única religião e que o homossexualismo era uma doença a ser combatida.

Mas um dia, pelas brechas da ousadia, na mesma escola lá da Colônia Oliveira Machado, nossos olhos de criança – carregados de curiosidade – viram outras crianças marcadas pelo espancamento, pelas feridas do abandono e da omissão. E como prega Paulo Freire usamos nossa curiosidade para perguntar, para abrir portas a meninos e meninas prisioneiros acima de tudo da injustiça e da intolerância.

Então, as brechas e a curiosidade nos aproximaram dos outros pobres, como nós, vizinhos da poeira forte e da falta d’água permanente (só não quando chovia. Afinal, a chuva para nós era sinal de festa, além de encher latas e camburões de cada casa do bairro); éramos e somos irmãos e irmãs da cor da pele, da cara de caboclo, de um jeito índio de ser. Éramos, sem saber decifrar, parte das “minorias” do Brasil.

Nessa arte de construir brechas, professores, padres e freiras, mulheres e homens anônimos nos ensinaram sobre uma outra escola, sem fronteira, determinada a questionar as regras dessa naturalidade que perpetua o egoísmo, o preconceito, a discriminação, a desigualdade. Nos animaram a desconstruir o olhar acostumado a não contrariar a normalidade das coisas. Essa escola, agora espalhada, se traduz em tantas vozes, constrói o território de esperança. É nela que se realiza o outro projeto, aquele pelo qual há 315 anos Zumbi deu a vida. Zumbi, Ajuricaba, Maruaga, Chiquinha Gonzaga, Pagu, Nestor Nascimento… são a nossa estrada. Nos alimentam a alma para seguir na luta e fazer soar bem alto o tambor da kizomba.

*Jornalista e professora do Curso de Comunicação da Ufam.

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