Wilson Nogueira* e
Alessandro Malveira**
Ana Rosas Montecón, professora e pesquisadora da Universidade Nacional Autônoma do México, defende o turismo cultural como fator de inclusão social e como contraponto ao turismo de sol e praia, que, preferencialmente, favorece a companhias transnacionais do setor. A internet é, para ela, ferramenta indispensável ao desenvolvimento dos pequenos negócios turísticos Uma quinta parte do turismo que chega anualmente a Barcelona é feito graças à internet. “É um turismo que não chega a hotéis, mas às casas de pessoas que colocam anúncios na internet. São jovens que abrem as portas de suas casas e passeiam com os turistas mostrando as festas, os locais não acessíveis”, explica. Ana Rosas participou, em Manaus, em outubro, do seminário Cultura popular, patrimônio imaterial e cidades, realizado pelo Grupo de Pesquisa Cultura Popular, Identidades e Meio A.ambiente na Amazônia, vinculado à Universidade Federal do Amazonas (Ufam). Confira a entrevista:
Qual o fio condutor das suas pesquisas? Trato de dois itens que se conectam em torno de um tema central, que é o aspecto intercultural. Sempre pesquiso as decisões e efeitos das declaratórias patrimônio mundial da Unesco. São declaratórias elaboradas para que bens ou práticas locais de excepcional importância cultural ou natural se transformem em patrimônios da humanidade e gerem referências para o conjunto da humanidade. Isto é: referências interculturais que permitam que todos nós sintamos que essas produções patrimoniais são todos nossos e não de uma nação ou grupo em particular. Conecto esse tema, também, com o turismo cultural. O turismo cultural alcançou, nos últimos anos, um desenvolvimento muito importante. Existe uma mudança no giro do turismo original. O patrimônio cultural e natural sempre foi motivo de atração turística, mas, nos últimos anos, houve uma mudança no gosto dos turistas que deixam de buscar exclusivamente os destinos de sol e praia, o turismo massivo, e buscam um turismo muito mais individualizado, muito mais local, que tenha um sabor pessoal e que lhe permita conhecer outra realidade cultural.
Qual a influenciada globalização nesse tipo de turismo? Pode-se dizer que a globalização favoreceu o desenvolvimento desse tipo de turismo, que ainda não tem as dimensões econômicas do de sol e praia, mas que é importante frente à crise que gerou o “turismo da indústria sem chaminé”, como erroneamente se lhe concebia. Esse tipo de turismo tradicional gerou grandes problemas em seu entorno, porque, geralmente, se desenvolve em enclaves turísticos que têm o ganho econômico como única meta, por isso, não consegue gerar processos de desenvolvimento locais nem regionais, assim criando crises ecológicas e sociais imprevistas. Mas eu me pergunto: em que medida esse tipo de turismo, que busca mostrar o patrimônio de uma nação, consegue competir em um mercado mais globalizado? Em que medida consegue, também, constituir-se em ponte para a interculturalidade, na possibilidade de que os turistas que viajam e conhecem os rituais, as danças, os festivais, os carnavais dos lugares visitados e não somente simulações espetacularizadas para os visitantes? Em que medida consegue conectar com outras culturas e estender pontes para o encontro das diferenças?
De que forma cidades, países e até organismos multilaterais devem ou podem se articular para fazer funcionar esse tipo de reconhecimento e uso dele como um produto turístico? Na realidade, esse é um assunto muito complicado, onde ainda não conseguimos articulá-lo a políticas urbanas, a políticas de desenvolvimento mais amplo. O patrimônio passou por distintas fases (das políticas até ao patrimônio). O patrimônio, originalmente, constrói-se como uma referência de identidade local e nacional de uma população. É o patrimônio cultural, formado no conjunto da sociedade, que une um País. Quando selecionamos produções culturais de diferentes nações, construímos um novo modelo. Estamos falando agora de uma fase que é muito tecnológica, é uma fase nova que traz a globalização, onde a referência já não é só com a identidade, mas também que se vincula o turismo à indústria.
As chamadas localidades podem obter certa lucratividade com essa crescente modalidade de turismo? Ao mesmo tempo em que se dá o processo de mercantilização, abrem-se as possibilidades para que o local arranque para o desenvolvimento. Mas, a única maneira para que isso ocorra, verdadeiramente, é a colocação da interculturalidade como o centro dessas políticas. Isso implica pensá-la como um espaço de encontro, implica que as pequenas comunidades tenham mais que isso. Geralmente neste modelo globalizado, o problema, para os nativos, é que eles são subordinados nas indústrias hoteleiras. Para eles sobram os piores postos de trabalho, como os de vendedores ambulantes. Quando pensamos como realmente podemos converter isso em um arranque de desenvolvimento, precisamos colocar as comunidades no centro, permitindo que não somente os grandes projetos se beneficiem. As sociedades locais devem obter contrapartida social e devem reconhecer seus direitos de acesso ao patrimônio cultural e natural valorizado.
Como essa relação se desenvolve no México? No México, tem predominado o modelo de desenvolvimento turístico montado sobre as grandes empresas transnacionais. Existe, no entanto, algumas experiências nas quais certas comunidades se capacitam como guias turísticos, e elas participam, de certo modo, da cadeia produtiva do turismo. Ao mesmo tempo, elas usam o patrimônio arqueológico como produto turístico, como certas pirâmides, nas quais uma parte do bilhete de entrada vai para o desenvolvimento local. Os museus comunitários se distribuem por todo o território nacional: mostram ainda o patrimônio cultural e natural em pequenos locais, suas comunidades, suas culturas locais e procuram, justamente, gerar não só lucros, mas, também, desenvolvimento cultural.
Qual o impacto dessa atividade nas culturas locais? Costuma ocorrer que as festas que entram nos circuitos de exibição turística no México perdem a sua lógica cultural. Existem danças ligadas a festividades religiosas que duravam a noite toda, mas, com a pressão mercantil, são feitas as mudanças para atender ao tempo dos turistas. Então, encurtam-se as danças, tira-se a lógica delas, negociam-se os vestuários. Essas danças e esses vestuários não tinham essa lógica de espetáculo. Agora têm cores mais vistosas, respondendo à expectativa dos turistas e das empresas que os mobilizam. Tudo está muito exagerado para conseguir o mercado. Acho que no Brasil também acontece isso, pois é uma lógica globalizada.
Certamente. Isso ocorre também no Brasil e na Amazônia… O artesanato no México, na etapa da industrialização, adquiriu outra cara. Ao mesmo tempo em que o México se desenvolvia industrialmente, os produtos artesanais mostravam outras formas de produção e venda. Havia uma variedade na produção artesanal, permitindo que povos inteiros vivessem do trabalho artesanal. Com a globalização, o artesanato começa a perder o espaço que tinha. A música popular é a que está conseguindo negociar melhor com o mercado.
Pode-se dizer que o artesanato se desvaloriza? No desenvolvimento artesanal, cada vez encontramos menos qualidade e menos produtos, e encontramos cada vez mais peças industrializadas. Os produtos têm que satisfazer ao mercado. Aconteceram dois movimentos: um é a massificação do artesanato, tirando a qualidade, e a outra é a elitização do artesanato. No caso da prata, grandes empresas têm produtos únicos desse metal, que são para um mercado de elite, e assim elas têm o espírito da peça única.
E o turismo ecológico em seu país? Temos vôos internacionais que vão diretamente às cidades turísticas. A Zona Maia, por exemplo, se apresenta como área de turismo ecológico, mas não é massivo, não é de alto impacto. São pequenos lugares, com hotéis, com poucos quartos, mas o preço é exagerado. Os valores, inclusive, não são nem com a moeda nacional, são em euro. Esse turismo se vende como turismo ecológico. Existem parques que se apropriam de uma zona arqueológica e que vendem atividades de contatos com golfinhos, entradas em cavernas e apresentam danças maias estilizadas. Enquanto, isso os maias não podem nem entrar em suas terras e não há uma política que busque integrá-los.
Qual a contrapartida social da globalização do turismo? Acho que é o fortalecimento das comunidades. Acho que a única possibilidade verdadeira é a parceria, porque ela permite a atração de visitantes. Há modalidades de turismo que se unem, como é o caso das empresas que atuam, simultaneamente, com turismo rural, turismo comunitário e com o ecoturismo, que beneficiam as pequenas comunidades. E agora, com a internet, cria-se uma grande vantagem. Pequenas famílias ou povoados podem montar sua página na internet. Não há necessidade de grandes recursos para se manter um site. O grande problema do México é que, lá, não se desenvolveu o turismo diversificado. Frente às restrições da legislação sobre patrimônio para participação das comunidades no seu cuidado e aproveitamento, houve grupos – em Chiapas, por exemplo – que quiseram se apoderar de patrimônios públicos, como das reservas arqueológicas, e isso gera conflitos porque a polícia tem que intervir.
A internet seria, também nesse setor, fator de inclusão social? Acho que a internet abre possibilidades pela facilidade de divulgação, tudo está muito distante. Com a internet podemos visitar museus e baixar músicas populares para que elas se façam conhecidas. Acho que o acesso horizontalizado favorece a inclusão social. Não quero dizer que tudo seja, necessariamente, democratizado. Há também formas verticalizadas, existem barreiras educativas, generalizadas e culturais que limitam o acesso, mas as potencialidades de informação cultural são enormes, como a revolução com os blogs. Antes da tragédia das torres gêmeas havia dezenas de blogs, agora são milhões de blogs dentro de tão poucos anos, que abriram a possibilidade aos internautas de questionar a informação dos meios, gerar novas perspectivas e participar ativamente na esfera pública. Acho que a Tinternet é uma revolução nesse sentido.
Fale mais da experiência dos pequenos empreendimentos com a internet. A Espanha desenvolveu uma política turística diversificada, que inclui todo tipo de apoios para o turismo rural, por exemplo. Uma quinta parte do turismo que chega anualmente a Barcelona é feito graças à internet. É um turismo que não chega a hotéis, mas às casas de pessoas que colocam anúncios na internet. São jovens que abrem as portas de suas casas e passeiam com os turistas mostrando as festas, os locais não acessíveis. O que me chamou a atenção é que a Associação Catalã de Turismo não os reconhece como turistas, porque, para essa instituição, turistas são os que se hospedam, comem, passeiam e compram. Temos que parar de pensar que turista é apenas aquele que vem de fora, o que não é bem assim. Temos que pensar também de que forma os indígenas passariam a ser turistas do seu próprio patrimônio. De que forma mudaríamos esses encontros interculturais? Inclusive, na América Latina, temos que pensar que os latino-americanos também são turistas. Mas, erroneamente, temos em mente que o turista, necessariamente, deve ser norte-americano ou europeu, que trazem muito dinheiro. Ainda não pensamos no turismo como um fator de encontro e desenvolvimento cultural.
Mas quais os fatores que gerariam essa incompreensão? O grande problema é que agora, com a globalização, os estados se vêem fragilizados, quando teriam que ter uma atitude firme frente ao mercado. O grande problema é que o turismo se vê como um negócio e não com um gancho de desenvolvimento cultural. O setor turístico, eu acredito, não tem o interesse de conhecer a cultura, e o setor cultural, também, não tem interesse de dialogar e articular-se com o turismo. Quando vamos aos museus, dificilmente encontramos folhetos ou guias que falem outros idiomas, nos preparamos apenas atender o mesmo turista que estamos acostumados a receber.
No Brasil, há um esforço para a valorização do patrimônio cultural dos negros e dos índios. O turismo ajuda nessa empreitada? Acho que o turismo abre também essa possibilidade. Quando chegam pessoas de fora e se fascinam com o que é nosso, acabam contagiando as pessoas que vivem no local visitado, porque começam a conhecer seus monumentos, as zonas arqueológicas e os parques. Antes, isso não fazia parte do cotidiano de prazer, de gosto e de divertimento da localidade.
No Brasil, por exemplo, a antropologia é pioneira no questionamento das formas desiguais nas que se constrói e circula o patrimônio nacional. No Brasil, o patrimônio que se valoriza é o dos brancos, e não a cultura dos negros ou dos índios. Valoriza-se o patrimônio das elites e não da cultura popular: as grandes obras de arquitetura, por exemplo. Com o desenvolvimento da indústria turística e da procura de mostrar as diferenças culturais para competir no mercado mundial, se abre possibilidade de revalorização das festas populares, árvores, frutas e ervas medicinais regionais.
Existem empresas, inclusive indígenas, de pequenos e médios empresários que vêm trabalhando por conta própria, sem grandes apoios, sem grandes recursos, mas que geram possibilidades dentro das legislações nacionais e até regionais, de proteção dos seus direitos relacionados ao conhecimento medicinal e técnico. Elas encontram nesta conjuntura de interação global crescente possibilidades de enfrentar a biopirataria. A grande desvantagem na América Latina é falta de regulamentação das patentes em favor das comunidades, nas quais se favoreceram empresas transnacionais que se apropriaram de seu patrimônio natural.
* Jornalista, sociólogo e escritor
** Jornalista e filósofo