Tenório Telles*
Um dos poetas vivos mais importantes da literatura brasileira, Thiago de Mello comemora, dia 30 de março, 93 anos. Sua obra conquistou relevância, ao longo dos anos, em razão de seus compromissos com a condição humana e os desafios de seu tempo.
Thiago é um daqueles raros poetas em quem a vida e a obra se expressam, entrelaçam-se, formando um todo expressivo esteticamente. Seus livros são quadros evocativos de seu itinerário poético-existencial. A palavra que melhor define a sua produção literária e sua trajetória – é fidelidade. Fidelidade ao humano, à sua vocação poética e à liberdade.
Ao longo de sua vida empreendeu fugas, amargou exílios, travou combates, fez-se cantador da utopia, da esperança, do homem, mantendo-se fiel a seus princípios, suas verdades e suas quimeras. Fez sua profissão de fé à poesia. O poeta encontrou sua justificativa existencial na literatura: “Somente sou quando em verso”.
A produção poética de Thiago nasceu sob os influxos do mal-estar que se seguiu ao término da Segunda Guerra Mundial. Estreou, em 1951, com o livro de poemas Silêncio e palavra , obra marcada por um profundo conteúdo subjetivo e intensa densidade existencial. Expressão da dor, da agonia do ser humano diante de um mundo em ruínas, subtraído da esperança. A angústia do poeta, sua busca de um sentido para a vida:
A couraça das palavras
protege nosso silêncio
e esconde aquilo que somos.
A trajetória do poeta Thiago de Mello é ilustrativa da força transformadora das palavras, do papel da poesia e dos professores no processo de formação dos indivíduos. Amparado em sólida formação familiar, Thiago teve a felicidade de ter duas professoras que determinaram-lhe o percurso existencial: Clotilde e Aurélia. Soube reconhecer a presença das duas mestras na sua vida:
Estudei no grupo escolar José Paranaguá, onde e graças a particularmente duas professoras, a dona Clotilde Pinheiro e a dona Aurélia do Rego Barros, eu descobri que o homem era capaz de criar a beleza. Eu, aos 9 anos de idade, já tinha lido os poemas de Casimiro de Abreu; eu já sabia “Ora, direis ouvir estrelas”, do Bilac…
II
A vida muda e os poetas não estão imunes aos influxos das transformações históricas. O poeta reflete o mundo e reflete-se nele. Esse aspecto terá profundas consequências na produção de Thiago de Mello. O advento da ditadura militar no Brasil, em 1964, o sequestro do sonho, a experiência dolorosa do exílio, os golpes de Estado na América Latina, nos anos 70, marcaram profundamente sua obra. As preocupações intimistas e a atitude cética, marcantes no início de sua produção, são substituídas por uma postura de combate. O poeta assume posições e paga seu tributo à liberdade, modulando seu discurso poético a um conteúdo de forte conotação social, como está evidente no “Artigo I”, dos Estatutos do Homem , escrito em abril de 1964:
Fica decretado que agora vale a verdade,
que agora vale a vida,
e que de mãos dadas,
trabalharemos todos pela vida verdadeira.
O escritor emerge de seus conflitos interiores. Sua poesia desabrocha para a vida, para a esperança de construção de um destino mais luminoso para o ser humano. O marco dessa mudança é a publicação, em 1966, de Faz escuro, mas eu canto . Contra a resignação, o medo e a desesperança, o poeta ergue a voz, colocando seu canto a serviço do homem, do sonho subtraído, da esperança aprisionada. O poema “A Vida Verdadeira” é uma evidência dessa percepção sobre a realidade:
Pois aqui está a minha vida.
Pronta para ser usada.
Vida que não se guarda
nem se esquiva, assustada.
Vida sempre a serviço da vida.
Para servir ao que vale
a pena e o preço do amor.
III
Há uma vertente da poesia de Thiago de Mello pouco lembrada. Trata-se do viés lírico de seu discurso poético, marcado pela presença de uma dicção amorosa, cheia de ternura, vibração e calor afetivo. Exemplo disso é o poema “Num campo de margaridas”, tão bonito e comovente. E de uma densidade crua e delicada. É um texto cheio de vida e movimento, em que é possível ouvir o ritmo dos versos e o movimento das cenas. O jogo entre o onírico e a vigília. E de como o encontro dos enamorados se dá dentro do sonho:
Sonhei que estavas dormindo
num campo de margaridas
sonhando que me chamavas,
que me chamavas baixinho
para me deitar contigo
[…]
Mas eu não fui, meu amor,
que pena!, mas não podia,
porque eu estava dormindo
num campo de margaridas
sonhando que te chamava
que te chamava baixinho
e que em meu sonho chegavas,
que te deitavas comigo
e me abraçavas macia
num campo de margaridas.
IV
O poeta cumpre o seu destino, apesar das perdas e dos desencontros. Mereceu da providência a ventura de chegar aos 93. Segue fiel à poesia e à sua crença num destino mais radioso para o homem e a civilização. Carrega no peito um coração insubmisso e na alma o gosto da liberdade. Persiste na sua fé e compromisso com o amanhã e com a utopia. Neste tempo de guerra e de escuridão seu canto reluz na noite: sonho que floresce como um raio que nos desperta do medo e da indiferença. A poesia de Thiago de Mello, além de seu caráter celebrativo da liberdade, nos ensina que, apesar das intempéries, é preciso continuar navegando, esforçando-se para se manter sempre fiel a si mesmo:
Como um rio, que nasce
de outros, saber seguir,
junto com outros sendo
e noutros se prolongando
e construir o encontro
com as águas grandes
do oceano sem fim.
Mudar em movimento,
mas sem deixar de ser
o mesmo ser que muda.
Como um rio.
A poesia é uma forma de ser no mundo e de compreendê-lo. É um olhar outro – que desvela e nos ensina que a salvação é um ato pessoal, libertário e de consciência. E só os que chegam ao coração da vida e ao próprio ser compreenderão o sentido da existência e de nossa presença no mundo. A poesia de Thiago de Mello é uma afirmação dessa busca e compromisso.
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*Tenório Telles é poeta e ensaísta, autor de Canção da esperança & outros poemas, Viver e Clube da Madrugada – presença modernista no Amazonas.