Tio Paixão

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 23/02/2010 às 00:00 | Atualizado em: 23/02/2010 às 00:00

Neuton Corrêa*

Prima Neila chorava na cabeça do falecido pai. O corpo estava embalado em um caixão estendido sobre uma mesa montada na garagem-pátio da casa. Ninguém a controlava. Ela era a única filha dos nove filhos do tio Manoel Paixão no velório. Os outros estavam no Japão. A prima derramou lágrimas que dariam para regar os jardins suspensos da Babilônia por alguns meses.

Tia Natikó, não! Estava, abatida, mas tranqüila. Expôs a serenidade oriental. Depois de suportar a embriaguez do tio Paixão por mais de 40 anos, mantinha a calma para cuidá-lo na dor que consumia seu fígado há seis meses. Enquanto o corpo recebia a visita dos amigos que freqüentavam o Bar da Tia, a viúva ficava ali, imóvel. Talvez a morte do marido fosse um alívio para ela.

Lembrei do tio Manoel Paixão hoje, ao pegar o 227 e passar pelo bairro Alvorada, onde o encontrei meses antes de morrer. Como não sabia o endereço, saí casa a casa à procura dele. Encontrei-o após dois dias. Ele estava à espera dos exames e consciente da opção que fizera: “Não posso aguardar outro resultado, bebo desde criança”, disse-me titio, ciente dos últimos dias de sua vida.

Antes de partir para o inferno… Não estou exagerando, senhoras, o sonho do titio era se encontrar com o “Dito Cujo”. Meu pai, irmão dele, dizia que desde a mais tenra idade, quando ele experimentou as primeiras goladas, titio já falava desse estranho desejo. E o deixava patente sempre que estava “lombrado” (termo que usava quando estava embriagado).

Tio Manoel gostava de impactar as pessoas. Era avançado demais para o seu tempo. Bêbado, falava do Diabo como um devoto. Tudo girava em torno disso. Certa vez, para mostrar que tinha pactos estranhos, colocou os dedos em uma tomada elétrica para se exibir. Eu ainda era bem garoto, mas desconfiei: “Quero ver o senhor fazer isso sem essas sandálias”. Ele ameaçou tirá-las, mas nunca o fez.

O titio também tinha outro devaneio. Dizia que quando dormia sem dinheiro acordava com o bolso cheio. Achava-se rico, rico demais. De tanto pensar assim, agia como tal. Troco, por exemplo, era coisa que não exigia. Pedia uma dose e quando lhe davam o troco, respondia: “Deixa para o Diabo”. E não pegava o trocadinho, mesmo!

Quando voltou do Japão, por exemplo, depois de ter ido trabalhar com os filhos por um período de quatro anos, não conhecia mais a moeda brasileira. Só falava em ienes e dólares. Na primeira visita que fez ao Bar do Montiê, por onde passava antes de ir ao Bar da Tia, disse ao velho credor:

– Montiê, agora estou rico. Trouxe trinta milhões de dólares.
O comerciante duvidou e respondeu:
– Não são trinta mil reais, Paixão?
– Que trinta mil, rapaz! Eu já fui prego, agora sou martelo. Montiê, eu trouxe tanto dinheiro que a partir de hoje tu nunca mais vai me ver repetindo um par de roupas.

E foi justamente essa mania de riqueza de meu tio que fez a prima Leila interromper o choro diluviano. Naquela hora, quando o corpo ainda estava fresco, chegaram os três primeiros amigos do titio e se colocaram perto do falecido. Um deles, cambaleando, quase caindo sobre o corpo, falou:

– É, Paixão, tu é pávulo, mesmo, tu não tem jeito! Até depois de morto, tu usa paletó e gravata.

Conhecendo o pai, a prima Neila saiu de perto do caixão e caiu na gargalhada.

*Escritor, filósofo, mestre em Sociedade e Cultura na Amazônia.
Ilustração: Romahs.

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