Por Célio Cruz *
Não é bem uma continuação, mas um desdobramento . Escrevi anteriormente sobre o desprezo que um desmemoriado Brasil tem pela cultura e pelo conhecimento; também escrevi sobre a obrigação moral que têm as pessoas não mordidas pelo monstro da desmemória e da ignorância de, da melhor e mais humana forma possível, resgatar os mordidos e contaminados, os quais também são vítimas de sequelas de ódio e alienação, que vêm no combo da mordida.
Pois, bem. Dito isto, passemos ao Rin-Tin-Tin. Andei intrigado por muito tempo em imaginar algum motivo para sermos tão colonizados pelos EUA, a ponto de milhares e milhares de brasileiros quererem ir para lá, morar lá, detonar o Brasil sempre por aqui e por lá, entregar tudo pros americanos e até lhes saudar e jurar a bandeira, querer ter a vida deles aqui e lá, falar e pensar em inglês, batizar os filhos com seus nomes, inclusive com nomes americanos que nem existem lá, como Cleide Daiane e Maicon Nadisson, asseguroume o compositor Nicolas Júnior; criar palavras americanas, como outdoor, pocket-show etc.; essa quem me disse foi o jornalista e jazz man Humberto Amorim. American way of life, forever and for all.
Mas, pera lá, como se diz, em legítimo caboquês: Os gringos defendem seu país e o Brasil, historicamente, não. Pois, é, aí é que vive o quê da questão. Esse misto de imitação e adoração não é da cultura americana totalmente não, é só de uma parte; pra mim, particularmente, é só da parte pior, da parte mais apelativa e atrativa: armas, guerras, violência, inimigos, glamour, sociedade de consumo e, mais que tudo, ódio aos comunistas. Quem nos educou de fato foi o Rin-Tin-Tin, e seus amigos símbolos americanos que vieram depois pelo cinema e pela TV. E isso já dura décadas. Basta dizer que ainda hoje nas operadoras de TV há os filmes, os filmes nacionais e os estrangeiros. Os filmes estrangeiros são os que não são nacionais nem americanos. Taí uma explicação pro Bolsonaro dizer: “O Brasil e os Estados Unidos acima de tudo!”, em recente visita à matriz. Somos americanos, praticamente, e não queremos nada com os do Sul.
Por que o Rin-Tin-Tin? Lembrei o meu tempo de menino quando a TV chegou a Manaus, trazendo o cinema e as séries americanas – os Westerns. Ganhei vários revólveres de espoleta de presente de Natal. A molecada toda queria ser caubói. Mas quem fez sucesso mesmo foi o Rin-Tin-Tin. Para o Rin-Tin-Tin (e seus amigos que vieram depois), o inimigo era o índio, principalmente daquela tribo mais rebelde, que é onde estão os índios maus e que flecham os heróis americanos, nossos heróis. Aqueles aborígenes negros também são maus e o Tarzan é nosso amigo; depois da escravidão, os negros bacanas e bonzinhos foram bem vindos à nossa sociedade; nós, americanos brancos somos os mais fortes e mais legais e os bandidos são comunistas russos e vietnamitas maus e traiçoeiros. Devemos vencê-los e matá-los. Os judeus mataram Jesus, que também era Judeu, mas tinha olhos azuis e é Filho de Deus e não há o que discutir – são do nosso lado – tanto Jesus quanto os outros judeus; além disso, os Judeus já foram bastante castigados pelo Hitler e são gente boa; quem não prestam são aqueles palestinos safados e terroristas. Mas, tudo bem, desde que se convertam à moral e religião judaico-cristãs, serão bem vindos, inclusive índios e negros, desde que não batam tambor e tenham bons modos, e judeus bacanas, com dinheiro. Se não se portarem direito, chamamos a SWAT, o FBI e a NASA, ou os clones locais (mas, sem inteligência e sem a ciência e a tecnologia).
Esse pensamento dominante do cinema americano invadiu as mentes e os lares brasileiros de forma devastadora, sobretudo pelo viés do espetáculo luminoso do cinema, mas com cariz mecanicista, pragmático, explorador, racista, sexista, religioso, homofóbico e anticomunista, sobretudo; já no plano educacional, que complementa o cultural, a escola nova implantada no Brasil, por exemplo, é uma imitação mal feita de um sistema educacional americano (sem regras, sem tecnologia e salários de professores ridículos); mas, isso merece um artigo pra tratar exclusivamente sobre o tema. Só pra finalizar aqui o tópico e dar uma casquinha de um próximo artigo: Não há imitação, por exemplo, do investimento americano em educação e na qualidade do ensino. Aliás, por lá tem uma escola (Revere High School, localizada na cidade de Revere, em Massachusetts) que foi considerada em 2014 o melhor ensino médio dos EUA, e utiliza o método do Prof. Paulo Freire, o qual é satanizado pelo atual governo brasileiro.
Lá nos States a maconha é utilizada pra tratar várias doenças, inclusive câncer, há muitos anos, mas aqui a moral judaico-cristã brazuca não quer nem tocar no assunto e trata mesmo do tema somente nas discussões criminais – “O cachimbo da paz foi proibido”!
Em suma, imitamos somente coisas ruins da cultura americana, de forma totalmente subserviente, econômica e espiritualmente. Não imitamos, por exemplo, a justiça americana (nada de Constituição que é respeitada pra sempre e indenizações milionárias por violações a direitos de cidadania), o patriotismo (o nosso é americano), o alto valor que se dá a bens impagáveis como a liberdade, a dignidade da pessoa, a honra; não imitamos o apreço pela cultura, pelos esportes e pela educação, pela pesquisa e pela ciência. Nem mesmo o capitalismo americano nós conseguimos imitar, pois o capitalismo americano é cultural e desenvolve o país inteiro, e paga bons salários. O nosso não; o nosso é pré-capitalismo, vinculado ao dólar e ao sucesso da economia americana e das elites locais, em uma distribuição de riqueza altamente desigual e injusta, com remuneração baixíssima ao trabalho e até desprezo por ele; em vez de escolas americanas, igrejas e pelourinho brasileiros, até hoje – é disso que gostamos. Gostamos de escravidão e mortes no campo e de pagar salários ruins por trabalhos hostis e paparicamos empresas delinquentes.
Não gostamos de museus, nem de poetas locais, principalmente; nem de livros e bibliotecas, nem de artistas locais, com raras exceções, se cooperarem, tudo bem; entre nós, é bom que escritores sejam mesmo em sua maioria funcionários públicos, já que não fazem nada. Não imitamos os americanos nisso tudo e também não queremos saber de reforma agrária como eles; não queremos saber de saúde pública, nem de esgotos, nem de boas ruas, estradas e calçadas, nem de rigores sanitários – queremos mesmo é produção rápida, com agrotóxicos, meios de produção e prestação de serviços inseguros, não confiáveis e lucrativos; temos de ter dinheiro e ter sucesso pra sermos americanos o quanto antes. Ir para lá, como fez o Joesley; aliás, se não tivesse transferido 80% dos negócios da JBS (que era do filho do Lula, lembram?) pra lá, estaria fazendo companhia pra Odebrecht na fila da recuperação judicial, por causa da autodenúncia brasileira levada a cabo pelos honestíssimos e seríssimos MPF e PF (órgãos americanos, na essência) via lava a jato.
Essas facetas de alienação cultural e falta de memória brasileira, com farta dose de ódio pela cultura, educação, ciência e meio ambiente, e aos comunistas maus que defendem esses setores, além de desprezo pelas minorias, estão bem visíveis no momento político atual, demonstrando, a todas as luzes, a entrega do patrimônio nacional, a quebradeira da economia brasileira, o desemprego e o aumento da violência e da desigualdade social, tendo como mero pano de fundo a disputa eleitoral prorrogada entre apoiadores e militantes de Bolsonaro e petistas.
É necessário destacar que atualmente apoiadores e simpatizantes do Presidente são pessoas comprometidas com a recuperação nacional, que estão fazendo a nova política e livrando o Brasil dos petistas e comunistas imorais e maus; e, atualmente, petista pode ser qualquer pessoa que discorde do, por assim dizer, com perdão do neologismo, bolsoway, e também que o PT é o maior partido do mundo, o qual agrega além do Chico Buarque, a Dilma, o Lula e seus seguidores fanáticos e corruptos, o Papa, o Roger Waters e o Prefeito de Nova York. Comunistas! Ô praga! Adoram uma mamata cultural.
Estamos experimentando de fato o tal déficit civilizatório cunhado (eu acho) pelo Ministro Barroso, e nossa tarefa/desafio atual tem sido garantir o mínimo de civilização diante da barbárie promovida oficialmente, tendo como principais alvos a cultura, a educação, a ciência e o meio ambiente. A poesia é e sempre foi necessária em momentos assim em que se persegue a vida, e mais necessário ainda é ouvir, ler e dizer, a plenos pulmões, o verso do velho combatente poeta Thiago de Mello: “Faz escuro, mas eu canto”.
*O autor é compositor, pedagogo e advogado.
Foto: Divulgação/Riverside Metropolitan Museum/O Globo/Internet