Segunda noite: Garantido e Caprichoso mostram suas raízes

O Garantido entrou na arena para fazer aquilo que melhor faz: brincar de boi. O Caprichoso evocou a própria ancestralidade com toadas antigas e menção a pessoas negras

Segunda noite: Garantido e Caprichoso mostram suas raízes

Dassuem Nogueira e Juliana Oliveira, da Redação do BNC Amazonas em Parintins

Publicado em: 29/06/2025 às 12:51 | Atualizado em: 29/06/2025 às 12:51

O boi Caprichoso chegou à arena do bumbódromo na noite deste dia 28 de junho evocando sua própria ancestralidade com toadas antigas e menção a pessoas negras importantes para o boi-bumbá, como Sila Marçal, Raimundinho Dutra, os irmãos Roque e Pedro Cid, Santarém, entre outras.

Patrick Araújo, o levantador de toadas, veio em uma embarcação em referência a Arlindo Júnior e a entrada emblemática na arena à frente de uma caravela em 1998. Mas, desta vez, a embarcação simbolizava um navio negreiro.

Tem-se tornado uma tradição que, na segunda noite, o boi negro de Parintins vá para a arena exaltando suas raízes afro. E, sendo assim, com o focinho enfeitado com grafismos.

Mais uma vez o Caprichoso lançou mão de guindastes para sustentar alegorias das quais saíam itens, e reforçou sua maestria quando se trata do item.

Destacaram-se alegorias maiores das quais saíam outras menores, em um recurso de bonecas russas que se encaixam umas nas outras.

Foi assim que a rainha do folclore Cleise Simas entrou em cena na segunda noite, içada às alturas em uma cobra que saiu de outra, uma alegoria fantástica do artista Alex Salvador.

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Os versos do amo azul

Dentro do tema da noite, o amo do boi Caetano Medeiros fez versos lembrando performances nas quais seu oponente fez uso de termos racistas para se referir ao boi Caprichoso no ano passado: “racistas não passarão”, versou.

Por outro lado, o amo do boi Garantido, João Paulo Faria, apareceu mais tradicional que a noite anterior, dando bastante espaço a versos de mestre Lindolfo e Tony Medeiros, o amo que lhe atendeu.

Também aumentou o tamanho de seu recurso cênico de um banquinho para um banco de praça.

Violência, opressão e resistência

Na celebração indígena, o boi Caprichoso encenou o genocídio de povos indígenas durante o período da ditadura militar.

Soldados com fardas dos anos 70 chegaram à arena cercando os povos indígenas, enquanto o apresentador Edmundo Oran relembrou fatos históricos ocorridos durante o período.

Uma alegoria de avião militar estilizado surgiu e permaneceu nas alturas durante a encenação.

Em seguida, os indígenas expulsaram os militares e iniciaram a coreografia.

A encenação causou tanto emoção e aplausos quanto alguma reprovação de um setor minoritário da plateia que é mais conservador.

No entanto, mostra que o boi Caprichoso está disposto a assumir publicamente sua crítica e sustentar seu posicionamento, mesmo diante da possibilidade de desagradar parte de seus torcedores.

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O patrimônio do Brasil

O boi Garantido entrou na arena para fazer aquilo que melhor faz: brincar de boi. Na noite cuja temática foi “Garantido, patrimônio do Brasil”, a associação iniciou a apresentação novamente com um preâmbulo e parece ter deixado de lado o momento tradicional da contagem na abertura da arena.

O boi da baixa da Xanda repetiu um imenso corpo de dançarinos que representava folguedos reconhecidos como patrimônio imaterial da humanidade.

A coreografia e a remixagem das toadas marcam o estilo Gandhi Tabosa de espetáculo e empolgaram a galera.

Os caboclos de lança, cujas cabeleiras agigantadas foram feitas de metalon, deram um efeito lindíssimo na arena.

Se, por um lado, o Caprichoso entrou na arena mostrando sua maestria alegórica, por outro lado, o Garantido se sustentou na tradição. As alegorias do Garantido estavam demasiadas aquém da qualidade e quantidade em comparação às alegorias do Caprichoso.

No entanto, há algo de encantador no Garantido que tem a ver com o saber-fazer a partir do tradicional e do simples. Sem guindastes e técnicas de suspensão alegórica, o Garantido trouxe para arena cores, emoção e tocou o coração das pessoas com a simpatia do boizinho branco.

David Assayag se redime

Em um dia em que seu nome foi envolvido em fake news sobre sua substituição durante o festival, David Assayag fez uma interpretação impecável e emocionante no item toada, letra e música, ao som de “Olhar de curumim”.

O levantador mostrou por que é um gigante da toada e a voz dos povos da Amazônia.

O estilo Gandhi

Nota-se ainda o estilo gandhicast na performance da sinhazinha, com o emblemático e aguardado número de coreografia de mãos (no estilo vogue), cujas luvas em laranja neon causaram grande impacto visual. Contudo, o figurino de seus fãs estava demasiado simples para o espetáculo.
A sinhazinha era seguida por seus fãs e teve um efeito cênico divertido.

Valentina Coimbra fez sua performance com muito carisma e técnica teatral, que imprime um repertório maior de expressividade para a personagem sinhazinha da fazenda, em relação a sua oponente, que a interpreta próxima ao personagem da princesa que flutua.

Problemas com alegorias

O Caprichoso teve uma sequência de problemas com alegorias na noite de ontem. A que trazia a sinhazinha da fazenda teve um princípio de incêndio que logo foi apagado pelos bombeiros ali presentes; a que deveria fazer o boi com o tripa sair de um boi agigantado deixou o segredo quase totalmente a mostra logo na abertura. Na mesma alegoria, uma serpente arriou sobre uma alegoria de batuqueiro, o que ocorreu porque um dos cabos que conduzem a descida das alegorias de guindaste enroscaram na alegoria e a derrubaram em plena arena.

Uma das serpentes da alegoria que contava a retomada das 12 itigãs munduruku soltou o dente, que ficou pendurado durante toda a sua execução. Aquela era, justamente, a cabeça de serpente que trazia o pajé.

Os problemas com as alegorias do boi Caprichoso podem custar pontos preciosos, justamente, no ponto mais forte da agremiação na disputa pelo tetra. E coloca em xeque o uso seguro do guindaste, que causa um efeito belíssimo, mas cujo manuseio de cabos em terra pode causar acidentes, para além de prejudicar o espetáculo.

Por sua vez, o boi Garantido, trouxe alegorias com acabamento questionável. A que trazia o boi bumbá, o astro maior, veio com ferraria aparente. A mesma estrutura trouxe a sinhazinha da fazenda. Viu-se ainda acabamento em TNT e spray feitos de modo descuidado.

Fechamento com pajés

A noite fechou com a apresentação do pajé do boi Garantido, Adriano Paketá, aclamado pela arena. Paketá entrou na arena como águia e, depois, dançou ao som da toada “Xamã Bahsese”, que se tornou a sua toada de evolução na arena.

Um dos itens individuais mais fortes do boi Garantido é justamente o pajé Paketá, que talvez pudesse ser mais explorado na última noite do festival. Além de excelente dançarino, o estilo do pajé Paketá é o de uma performance do xamã guerreiro, aquele que viaja entre mundos e, na relação com outros seres não-humanos, consegue promover a cura dos doentes.

Ao contrário, o boi Caprichoso traz outro estilo de pajé. Embora seja excelente coreógrafo, Erick Beltrão traz para a arena um pajé metade humano, metade outro ser, careteiro — ou, para usar um termo regional, um pajé mizurento, macabro e assustador.

Paketá e Beltrão mostram que é possível ter diferentes interpretações do que seja xamanismo na Amazônia.

Resta saber o que os povos indígenas acham disso e, sobretudo, jurados e juradas.

Fotos: Juliana Oliveira/ especial para o BNC Amazonas