Primeiro indígena doutor em antropologia da Ufam lança livro em Manaus
João Paulo Lima Barreto reuniu na obra os conhecimentos medicinais dos povos do alto rio Negro sobre o corpo e a saúde

Arnoldo Santos, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 21/07/2022 às 16:43 | Atualizado em: 21/07/2022 às 16:44
Em tempos de pandemia do coronavírus, mudanças climáticas e perdas de partes consideráveis da biodiversidade, o livro “O mundo em mim: uma teoria indígena e os cuidados sobre o corpo no alto rio Negro” aparece como uma opção fundamentada de uma nova leitura sobre o corpo, saúde e doenças e a relação que têm entre si.
O autor é João Paulo Lima Barreto, primeiro indígena a receber o título de doutor em antropologia pela Universidade Federal do Amazonas (Ufam).
O livro, que acaba de ser lançado pela editora Mil Folhas-IEB, é o resultado da tese de doutorado do antropólogo, atualmente pesquisador do Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena da Ufam.
Natural de São Gabriel da Cachoeira, no Amazonas, Barreto nasceu na aldeia São Domingos, da etnia tukano.
Em pouco mais de 250 páginas, ele relata, de maneira organizada, os ensinamentos de medicina indígena. Foi o que presenciou no convívio com seu povo, das práticas de cura do avô Ponciano Barreto, e do pai Ovídio Barreto, dos tios e outros “kuamãs”, especialistas desses saberes.
O autor registra, dessa forma, conhecimentos do universo cultural dos povos tukano, tuyuka e desana. Todos são habitantes nativos da região do alto rio Negro, no norte do Amazonas.
A noção de corpo humano, segundo o ponto de vista dos especialistas indígenas, compõe um capítulo do livro.
Nele, o autor mostra, segundo a mística tukano, sobretudo, que o corpo foi forjado pelos “elementos que constituem o mundo terrestre”: luz, floresta, terra, água, animais, ar e o próprio homem.
Como resultado, esses elementos estão interligados e a saúde do corpo estará diretamente ligada ao modo de interação deles, formando uma “teia de existência”.
Conforme Barreto, “é a partir da noção de elementos que constituem o corpo que os especialistas lançam mão das fórmulas de bahsese proteção, das substâncias curativas contidas nos vegetais, nos animais, nos minerais e nos fenômenos naturais, para produzir o cuidado do corpo e das pessoas”.
Retrato das tradições
No final, o livro passeia pelo universo da mística indígena tucana, funcionando como uma tradução das tradições.
Muito do que está escrito foi registrado no Centro de Medicina Indígena Bahserikowi, que funciona em Manaus.
Foi no centro que o autor registrou um caso de uma menina indígena que havia sido picada de cobra. Médicos não indígenas haviam indicado a amputação de perna da vítima, mas os kuamãs a curaram sem a necessidade dessa medida.
Foi ouvindo como os kuamãs relacionavam os sintomas com o modo de vida dos pacientes, aplicando tratamentos que incluíam desde remédios espirituais, fórmulas naturais extraídas de elementos da natureza e até mudanças na dieta alimentar, que Barreto organizou e montou uma “teoria sobre o corpo e os processos de vida aí implicados”.
Reconhecimento acadêmico
O trabalho de Barreto já entra na lista de estudos antropológicos sobre a população indígena da Amazônia com prestígio de nomes respeitados na antropologia internacional.
A começar pelo antropólogo britânico Stephen Hug-Jones, um dos maiores conhecedores os povos indígenas do alto rio Negro, seu objeto de estudo por 50 anos.
Professor aposentado da Universidade de Cambridge, da Inglaterra, Hug-Jones assina o prefácio do livro e exalta a peculiaridade do trabalho escrito por um pesquisador indígena, que não somente domina a língua tukano, mas que tem vivência de sua cultura.
“O domínio da língua por parte de João Paulo liberta-nos das conotações coloniais, carregadas de poder e assimetrias pelo jargão antropológico”, diz o professor britânico.
E completa, dizendo:
“Faríamos bem em prestar atenção à teoria tukano da vida e aprender com ela. Aprender que, para sermos feliz e saudáveis, também devemos limitar nossas vidas e limitar nosso consumo. Exercício de reflexividade que encontramos nesse livro pode ter sido difícil, mas certamente importante e valioso para todos nós”.
Pioneiro
A importância acadêmica do livro vai muito além da estatística que o enquadra em mais uma produção científica sobre as populações tradicionais da Amazônia.
A diferença é que, aqui, é um cientista de origem indígena falando do seu próprio povo, do ponto de vista do pesquisador nativo, fazendo o que se poderia chamar de uma “antropologia indígena”.
Por isso, a doutora em antropologia Luisa Belaunde (Universidade de Londres) considera o livro de Barreto “pioneiro de antropologia da saúde”.
Reforçada pelo orientador de doutorado do autor, o também antropólogo Gilton Mendes dos Santos (Ufam), que avalia a obra como “uma rica e profunda reflexão sobre a noção de vida e pessoa”.
Muito a falar
No lançamento do livro em Manaus, no último sábado (16), Barreto falou para uma plateia diversa, formada por estudantes, professores, pesquisadores e jornalistas.
De fala mansa e tímida, foi objetivo e enfático. Exaltou o apoio que teve para se tornar o primeiro doutor em antropologia da Ufam e disse que há muito mais o que falar.
“Os indígenas têm muito o que falar, desde que tenhamos essa parceria, companheirismo e cumplicidade também. Temos orientadores, temos programa, temos professores que discutem com a gente, que ouvem a gente e a gente aprender (sic) com eles também. Eu digo pra vocês, se me perguntarem: qual a teoria antropológica que eu defendo. Não sei nada. Também, o contrário, os professores também não sabem a teoria do meu pai. Aí é que está a fronteira”, diz o pesquisador.
Apoio
Para cursar o doutorado e fazer sua pesquisa, Barreto teve o apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), da qual recebeu uma bolsa de estudos.
O selo pelo qual o livro foi editado, Mil Folhas, pertence ao Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB), uma organização que apoia a produção cultural e a difusão do conhecimento em diversas áreas, em especial de meio ambiente e social. A produção do livro também teve o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Amazonas (Fapeam).
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