Dom Hudson, 1.º bispo parintinense, Garantido desde criança

Em entrevista ao BNC, bispo fala das memórias de sua infância, do boi Garantido, e de como elas o influenciaram na vida e na igreja

Dom Hudson Ribeiro Manaus

Wilson Nogueira, especial para o BNC Amazonas

Publicado em: 15/02/2024 às 07:11 | Atualizado em: 15/02/2024 às 22:44

O recém-ordenado bispo auxiliar de Manaus (AM), dom Hudson Ribeiro, é um parintinense que se orgulha de ter nascido na Baixa da Xanda. Para esse lugar as suas memórias de infância se voltam recorrentemente. 

O bispo, com 50 anos de idade, é o penúltimo dos nove filhos de dona Rosa Rodrigues Ribeiro e Joaquim Córdoba Ribeiro (falecido), então moradores da avenida Nações Unidas, nas proximidades do curral do boi-bumbá Garantido. Do Garrote, tornou-se brincante desde criança.  

Ele foi ordenado a bispo no dia 13/2, na Igreja de Nossa Senhora da Conceição, em Manaus, na presença de familiares, clero local, artistas, fiéis de  religiões afros, cristãos de denominações protestantes, pessoas em situação de rua e trabalhador (a)s do sexo.

São pessoas com as quais ele se relaciona no seu cotidiano de sacerdote. Isso porque, desde cedo, aprendeu que amar o próximo é ser sujeito do próprio amor personificado na vida e ressurreição de Cristo.

O religioso explica que a diversidade de crenças antecede à formalidade religiosa. “É uma questão de identidade religiosa e cultural”, disse.

Identidade e existência

E, para ele, a identidade é sustentada pela memória que dá significado à existência humana.   

Memórias da infância 

Assim, a vida do novo bispo é permeada pelas lembranças da criança, do jovem e do adulto que supera desafios por meio da compreensão da complexidade humana.

“Os meus elementos religiosos básicos vêm dali, porque fui batizado na paróquia de São Operário”, disse.

Ele cita episódios que reafirmam a sua formação de caráter plural, como a valorização das crendices, do reconhecimento da medicina popular e do imaginário dos povos originários.

Tive um acidente no braço aos nove anos, e o braço ficou duro. Passou tempo demais no gesso e os médicos não resolveram aqui [em Manaus]. Aí recorri para quem? Para o seu Valdir Viana (saudoso pegador de ossos de Parintins], que já tinha resolvido o problema dos pés da minha irmã Nazaré, que nasceram tortos; e o seu Valdir Viana colocou o meu braço no lugar, contou. 

Em outra ocasião, ainda em Parintins, dona Rosa (com ele, ainda bebê, nos braços) sofreu um acidente a caminho do hospital, na garupa de uma moto dirigida por Élcio Martins [irmão de dona Rosa]. A dona Rosa quebrou um braço, mas o bebê permaneceu sem ferimentos.

“Pedi para Nossa Senhora do Carmo me acudir, para que a gente conseguisse sair dali. O meu braço é torto por isso, mas tu não caíste”, comenta dom Hudson, recordando diálogos com dona Rosa.

Recorrendo às recordações da dona Rosa, dom Hudson narra que o seu irmão João Paulo (percussionista) nasceu no dia de São João, santo festejado pelo boi-bumbá Garantido. Lindolfo Monteverde [saudoso fundador do boi-bumbá Garantido], em respeito ao trabalho do parto, só acionou a batucada depois do bebê vir à luz. Por isso, ele tem João no nome.

A Baixa e o Garantido

Minhas memórias de infância são todas remetidas à Baixa e ao âmbito da Igreja do São Benedito e da Igreja de São José Operário. Aquela área ali, como se fosse um quadrilátero, é o pedaço das minhas memórias de infância, revela. 

Dom Hudson lembra até da sua primeira “saída” no Garantido, aos cinco ou seis anos de idade. Dona Rosa pegou um talo de mamoeiro, o cobriu com papel de embrulhar bombom, fez uma lança, vestiu-lhe uma tange e o autorizou:  

– Está pronta a tua roupa!  Atravessa a rua e vai brincar lá no curralzinho.

Para ele, essas memórias são muito ricas e cheias de significados, porque elas envolvem nascimento, afeto, promessa e gente.

A gente não é só Garantido por causa da questão folclorística. A gente é Garantido por causa da nossa identidade, de se enxergar sujeito a partir de elementos da cultura e do folclore, do vínculo de estar ali no amparo da parteira e do trapo de rede, do choro do menino e da batida [da batucada) toda ali, explica.

Baixa da Xanda, atualmente

Teologia

Dom Hudson ensina que a Igreja Católica, na sua teologia de base e fundo, preserva muito o tema memória, porque elas estão nas palavras da eucaristia, pois quando Jesus toma o cálice, o pão, o vinho e os consagra como corpo e sangue de Cristo, Ele diz: “Fazei isto em memória de Mim”.

Mesmo que viéssemos para Manaus, Parintins nunca saiu da gente

Assim, assegura ele, toda a nossa celebração da missa é reforçar a  memória desse grande acontecimento. “Para nós, a memória á preservada, resgatada e valorizada. E Parintins me traz esses momentos. Mesmo que viéssemos para Manaus, Parintins nunca saiu da gente”.

E releitura dos episódios e reflexões emanadas da memória, dom Hudson acredita que foi lhe trabalhando com elemento de fé, a partir da cultura e do folclore:

“Sou um cara muito da arte. E em Manaus, a gente vai cutucando tudo quanto é canto da música, na qual acredito muito no quanto ela traz o melhor que pode eclodir da pessoa”, reforma.

“Identidade rompida é violência”

Assim, o agora bispo reafirma que continua torcendo para o Garantido, com a justificativa de que “identidade rompida é violência”. 

Não sou esse do apartidário. Mesmo na política, sempre manifestei em quem acredito. A gente é de uma instituição, mas a gente não deixa de ser pessoa. A pessoa veio antes, o cidadão veio antes, o curumim veio antes. O menino está antes e eu faço questão de preservar o que está conosco e que esteve conosco, argumenta.

PHD em Psicologia, dom Hudson esclarece que nunca deixou academicismo acima do que é valor daquilo se valoriza enquanto crendices, como o trabalho das rezadeiras, do rezador, da pegador(o)a de desmentidoras.

Isso é importante, para quem é professor universitário, porque o nosso olhar é diferenciado para os alunos que vêm do interior […] São ele e ela se construindo como sujeito(a)s a partir de uma construção que já estava feita, a partir das heranças culturais dele e dela, reafirma.

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Frases

Na infância, quando a gente veio para Manaus morávamos em uma vila e o meu contacto com mulheres prostitutas era muito frequente. Eu dizia que elas eram minhas madrinhas e de meus irmãos. Fui me encontrando nesses traços de grupos discriminados, nos quais o preconceito foi muito presente…

Incomodava-me muito quando, pejorativamente, se chamava [essas pessoas] de macumbeiros, de coisas do demônio. Sempre achei que tudo precisava ser respeitado. Depois que eu me tornei padre, isso se tornou muito mais forte, muito mais depois que passei para a catedral [Catedral Metropolitana de Manaus]. Mais ainda por conta da Nossa senhora da Conceição, que se sincretiza como mamãe Oxum. Aí as amizades foram se afirmando. Foram se fortalecendo o contato com o povo da rua, com as pessoas que vivem situação da rua, como as mulheres da prostituição… Na pandemia, muito mais ainda, quando tudo fechava.

Deus tem os seus caminhos pelos quais vai nos encontrando a ter uma opção pelos preferidos de Jesus. Quando Jesus diz que os cobradores de impostos, os ladrões daquele tempo, e as prostitutas nos precederão no Reino dos Céus, ele sabia o que estava dizendo. Longe de nós, cristãos, alimentarmos a discriminação, o preconceito, o racismo, a indiferença, o dois pesos e duas medidas conforme aquilo que achamos que seja verdade, ou como mentira ou como superioridade ou como inferioridade. A gente precisa procurar diminuir tudo isso.

Foi um momento [da ordenação] muito marcante. Eles fizeram lá do seu jeito a sua homenagem. Senti-me muito abraçado, um abraço físico, mas foi muito um abraço da alma também. Então eles diziam que estavam muito orgulhosos de mim, porque o padre deles havia se tornado bispo. Aí talvez não se entenda muito isso, mas um deles disse assim: “É um de nós”! Então, acho que há muita responsabilidade sobre isso: de cuidar das pessoas, de querer ver um sinal.

[…] Sinto-me muito responsável com o pontificado de Francisco, que olha para a Amazônia e reconhece que caboclo pode ser bispo, que aqui a evangelização vem assumindo a continuidade dos missionários que vieram para cá; mas que esses missionários não precisam, necessariamente, ter olhos azuis, ter pele branca, mas que podem ter, também, pele igual a nossa. O Papa reconhece que a gente sabe propor conhecimento, mudança e uma série de coisas.

[…] acreditamos na força dele [Papa Francisco] em termos de propor mudanças para a Igreja. Ele olha para nós, escolhe um filho da terra, dessa vez lá da Baixa da Xanda, da Baixa de São José. 

Meu sim é o sim para amar e servir e não esquecer dou que ouvi [na ordenação] de quatro ou cinco pessoas repetirem esta frase assim: “Não se esqueça de quem você é, não se esqueça das suas raízes. Isso soou muito forte para mim”. 

Foto: Capitura de tela