Vida e literatura: um depoimento a Tenório Telles

Literatura

Aguinaldo Rodrigues

Publicado em: 29/03/2019 às 11:26 | Atualizado em: 29/03/2019 às 11:38

 

 

Eu nasci na beira do paraná do Ramos, no município de Barreirinha, num lugar chamado Bom Socorro. E nesse lugar eu vivi até pouco mais de 4 anos. E eu tenho as minhas primeiras lembranças já das águas, das nuvens, dos pássaros, das estrelas e da floresta. Essas são as minhas primeiras lembranças.

E em Manaus eu vivi o período mais luminoso da minha infância e todo o começo da minha juventude. Juventude que, como vocês estão vendo, ainda não terminou. A minha juventude ainda não terminou, nos 70 anos que eu faço dentro de alguns meses, porque ainda não perdi a esperança da construção de uma sociedade humana solidária, para a qual a poesia, a criação artística, têm muito com que contribuir.

Estudei no grupo escolar José Paranaguá, onde e graças a particularmente duas professoras, a dona Clotilde Pinheiro e a dona Aurélia do Rego Barros, eu descobri que o homem era capaz de criar a beleza.

Eu, aos 9 anos de idade, já tinha lido os poemas de Casimiro de Abreu, eu já sabia ouvir “estrelas”, do Bilac.

Já sabia, aos 10 anos, quando terminei o meu curso primário e entrei para o Ginásio Amazonense Pedro II, eu sabia de memória o soneto, um dos mais belos da língua portuguesa, “A Carolina”, de Machado de Assis.

Então, no ginásio, eu lia Drummond, eu lia Manuel Bandeira, eu sabia “Essa Negra Fulô”, de Jorge de Lima.

Eu encerro, portanto, esse período da minha infância e minha adolescência, até os 15 anos, quando deixei Manaus sozinho num navio do Lloyd, chamado Almirante Alexandrino, a caminho do Rio de Janeiro, para estudar medicina, eu já levava comigo abertas algumas vertentes fundamentais de minha vida, que me acompanham até hoje.

Eu já sabia primeiro que o homem era capaz de criar a beleza. Eu já viajei sabendo que a vida humana, nesse lugar chamado terra, é marcada por profundas e terríveis desigualdades sociais. E já sabia que o amor era possível e que uma das mais belas formas de amor é a amizade.

Eu fui capaz de uma coisa muito importante pra minha vida, antes de qualquer influência literária. Passava para o quinto ano de medicina, quando decidi enfrentar a sério a opção que se colocava dentro de mim, desde o segundo ano do curso, entre a literatura e a ciência. Eu optei pela literatura, o que entristeceu muito o meu pai.

E a primeira pessoa a quem eu procurei chama-se Carlos Drummond de Andrade, no nono andar do edifício do Ministério da Educação, a primeira obra grandiosa da arquitetura moderna no Brasil, realizada por uma equipe comandada por Lúcio Costa, em cima de um traço original de Le Corbusier.

Levei os meus poemas para Drummond, a quem eu não conhecia e não fui recomendado por ninguém; Drummond deixou os poemas de lado e durante umas duas horas tratou primeiro de me convencer a não largar a medicina, que ninguém pode viver de literatura no Brasil.

Eu próprio, como você está vendo, sou um burocrata. Embora, nesse momento, em que eu cheguei lá, ele estivesse revendo os poemas dele de Claro enigma. E depois quis saber-me do Amazonas, voltou e disse: daqui a três dias você retorna. Eu regressei e ele disse: é, você nasceu com a tara, você não tem jeito, você é poeta. Faça o que você quiser.

Me fez observações, celebrou meu domínio sobre a palavra, o rigor da construção. Perguntou onde eu havia aprendido a métrica, sobretudo as tônicas jâmbicas. Sozinho, lendo alguns livros – respondi. Eu, desde menino, gostava muito da musicalidade, da sonoridade dos poemas e da prosa também.

A verdadeira prosa tem que ter a cadência, como diz o Borges. Então eu publico meu primeiro livro, “Silêncio e palavra”. Menos de um ano depois “Narciso cego”.

 

O texto é parte do depoimento concedido pelo poeta para o CD-ROM “O Amazonas em sua literatura”, organizado pelo escritor Tenório Telles.

 

 

Poemas lidos pelo poeta quando jovem e importantes na sua formação:

 

Olavo Bilac

 

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo”

Via-Láctea

XIII

“Ora (direis) ouvir estrelas! Certo

Perdeste o senso!” E eu vos direi, no entanto,

Que, para ouvi-las, muita vez desperto

E abro as janelas, pálido de espanto…

E conversamos toda a noite, enquanto

A via-láctea, como um pálio aberto,

Cintila. E, ao vir do sol, saudoso e em pranto,

Inda as procuro pelo céu deserto.

Direis agora: “Tresloucado amigo!

Que conversas com elas? Que sentido

Tem o que dizem, quando estão contigo?”

E eu vos direi: “Amai para entendê-las!

Pois só quem ama pode ter ouvido

Capaz de ouvir e de entender estrelas”.

 

 

Machado de Assis

 

“A Carolina”

Querida, ao pé do leito derradeiro

Em que descansas dessa longa vida,

Aqui venho e virei, pobre querida,

Trazer-te o coração do companheiro.

 

Pulsa-lhe aquele afeto verdadeiro

Que, a despeito de toda humana lida,

Fez a nossa existência apetecida

E num recanto pôs um mundo inteiro.

 

Trago-te flores, – restos arrancados

Da terra que nos viu passar unidos

E ora mortos nos deixa separados.

 

Que eu, se tenho nos olhos malferidos

Pensamentos de vida formulados,

São pensamentos idos e vividos.

 

 

Jorge de Lima

 

Essa negra fulô

 

Ora, se deu que chegou

(isso já faz muito tempo)

no bangüê dum meu avô

uma negra bonitinha,

chamada negra Fulô.

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

— Vai forrar a minha cama

pentear os meus cabelos,

vem ajudar a tirar

a minha roupa, Fulô!

 

Essa negra Fulô!

 

Essa negrinha Fulô!

ficou logo pra mucama

pra vigiar a Sinhá,

pra engomar pro Sinhô!

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá)

vem me ajudar, ó Fulô,

vem abanar o meu corpo

que eu estou suada, Fulô!

vem coçar minha coceira,

vem me catar cafuné,

vem balançar minha rede,

vem me contar uma história,

que eu estou com sono, Fulô!

 

Essa negra Fulô!

 

“Era um dia uma princesa

que vivia num castelo

que possuía um vestido

com os peixinhos do mar.

Entrou na perna dum pato

saiu na perna dum pinto

o Rei-Sinhô me mandou

que vos contasse mais cinco”.

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

Vai botar para dormir

esses meninos, Fulô!

“minha mãe me penteou

minha madrasta me enterrou

pelos figos da figueira

que o Sabiá beliscou”.

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

(Era a fala da Sinhá

Chamando a negra Fulô!)

Cadê meu frasco de cheiro

Que teu Sinhô me mandou?

— Ah! Foi você que roubou!

Ah! Foi você que roubou!

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

O Sinhô foi ver a negra

levar couro do feitor.

A negra tirou a roupa,

O Sinhô disse: Fulô!

(A vista se escureceu

que nem a negra Fulô).

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê meu lenço de rendas,

Cadê meu cinto, meu broche,

Cadê o meu terço de ouro

que teu Sinhô me mandou?

Ah! foi você que roubou!

Ah! foi você que roubou!

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

O Sinhô foi açoitar

sozinho a negra Fulô.

A negra tirou a saia

e tirou o cabeção,

de dentro dêle pulou

nuinha a negra Fulô.

 

Essa negra Fulô!

Essa negra Fulô!

 

Ó Fulô! Ó Fulô!

Cadê, cadê teu Sinhô

que Nosso Senhor me mandou?

Ah! Foi você que roubou,

foi você, negra fulô?

 

Essa negra Fulô!

 

Especial Thiago de Mello 93 anos _ Leia mais

Soneto para Thiago de Mello

Thiago de Mello: Poesia, vida e liberdade

Valer lança 7ª edição de Estatutos do Homem, de Thiago de Mello

 

 

Foto: Reprodução/site Maloca Digital