Impeachment nos estados tende ao fracasso, dizem especialistas
Os governadores derrubam na Justiça as ações ou sufocam os processos nas prĂ³prias casas legislativas de alguma forma

Publicado em: 06/07/2020 Ă s 18:25 | Atualizado em: 06/07/2020 Ă s 18:33
Historicamente, no Brasil, processos de impeachment contra governadores nĂ£o prosperam e acabam “morrendo na praia” por dois motivos:
Os mandatĂ¡rios derrubam na Justiça as ações ou sufocam os processos nas prĂ³prias casas legislativas de alguma forma.
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Portanto, os processos como os que ameaçam Wilson Lima (PSC-AM) e Wilson Witzel (PSC-RJ), tendem a naufragar com mais facilidade na comparaĂ§Ă£o com os de presidente da RepĂºblica.
Governadores se salvam
Historicamente, decisões judiciais e acordos polĂticos tornam mais reversĂveis os processos abertos nos estados, o que explica a sĂ©rie de casos em que governadores conseguiram se salvar.
Desde a redemocratizaĂ§Ă£o, os presidentes Fernando Collor de Mello (1990-1992) e Dilma Rousseff (2011-2016) sucumbiram diante de processos contra eles.
Embora vira e mexe o assunto surja nos estados, o desfecho em que o mandatĂ¡rio vĂ¡ a julgamento por crime de responsabilidade Ă© raro.
Como a Folha mostrou, o Ăºnico caso de um processo de impeachment de governador concluĂdo no paĂs ocorreu em 1957, em Alagoas.
A investida contra Muniz FalcĂ£o, cuja sessĂ£o decisiva marcada por um tiroteio entre deputados, chegou Ă fase final de julgamento, algo inĂ©dito.
Embora tenha sido afastado do cargo e substituĂdo pelo vice, FalcĂ£o conseguiu se safar na Ăºltima etapa do processo.
Beneficiado também por medidas judiciais, ele retomou o posto e terminou o mandato.
Ainda assim, seu caso Ă© tido como emblemĂ¡tico por estudiosos do tema.
Witzel e Lima estĂ£o justamente na fase de tentar, por vias judiciais, ganhar tempo nas respectivas Assembleias, onde sĂ£o investigados por crime de responsabilidade, mesmo elemento necessĂ¡rio ao impeachment presidencial.
Julgamento Ă© mais polĂtico do que jurĂdico
“A lei do impeachment, de 1950, foi formulada basicamente para presidente, nĂ£o para governador e prefeito”, diz JoĂ£o Villaverde, que Ă© doutorando em administraĂ§Ă£o pĂºblica e governo pela FGV-SP e estudou, em sua tese de mestrado, a aplicaĂ§Ă£o dessa lei.
“Existe um problema intrĂnseco ao texto: o julgamento no plano federal se dĂ¡ em duas cĂ¢maras, a CĂ¢mara e o Senado, mas no local hĂ¡ apenas uma. Isso nĂ£o ficou bem resolvido. Muitos governadores se utilizam do vĂ¡cuo legal para contestar o processo porque hĂ¡ mais brechas para revertĂª-lo”, afirma.
Além da lei federal, as Assembleias se baseiam nas constituições estaduais.
O papel do Senado, equivalente Ă segunda instĂ¢ncia, Ă© exercido por um tribunal misto composto por cinco deputados estaduais e cinco desembargadores do Tribunal de Justiça.
O Brasil vive uma “sanha do impeachment” desde Collor, na opiniĂ£o de Villaverde, com a ideia de que o afastamento Ă© sempre uma saĂda para qualquer tipo de crise.
“A sociedade passou a achar que o custo [desse processo] baixou, que nĂ£o Ă© tĂ£o problemĂ¡tico assim, o que nĂ£o Ă© totalmente verdade.”
Pandemia agravou situações
A pandemia do coronavĂrus, que obriga decisões rĂ¡pidas e de emergĂªncia pelos governadores, contribui para o cenĂ¡rio.
JoĂ£o Doria (PSDB-SP), Romeu Zema (Novo-MG), JoĂ£o AzevĂªdo (Cidadania-PB) e Carlos MoisĂ©s (PSL-SC) tiveram que lidar com ameaças da oposiĂ§Ă£o envolvendo impeachment.
JĂ¡ em 1951, ano seguinte Ă aprovaĂ§Ă£o da lei do impeachment, o instrumento foi usado politicamente para dar um recado ao entĂ£o governador do Rio Grande do Norte, JosĂ© Varela.
Seu afastamento foi aprovado a cinco dias do fim do mandato e acabou revertido pelo JudiciĂ¡rio.
Outros casos com desfechos semelhantes
Em 1997, o entĂ£o governador de Santa Catarina, Paulo Afonso Vieira (Ă Ă©poca no PMDB), escapou depois que um relatĂ³rio da ComissĂ£o Especial Processante a favor de seu afastamento foi rejeitado pelos parlamentares.
Entre a abertura do processo e a votaĂ§Ă£o da comissĂ£o, Vieira conseguiu mudar o voto de quatro deputados a seu favor e foi beneficiado por decisĂ£o do STF (Supremo Tribunal Federal) que impediu seu afastamento temporĂ¡rio do cargo.
Assim como no impeachment de Vieira, os processos contra governadores tĂªm encontrado escape na arena polĂtica ou jurĂdica — ao contrĂ¡rio dos casos de Dilma e Collor.
Em 2018, Fernando Pimentel (PT-MG) e Luiz Fernando PezĂ£o (MDB-RJ) viraram alvos de processos, que nĂ£o terminaram a tempo do fim do mandato deles.
Marcos Rocha (PSL-RO) obteve o arquivamento do seu caso pela Assembleia em 2019. E Waldez GĂ³es (PDT-AP), em 2015, conseguiu frear seu impeachment por meio de decisĂ£o judicial.
Uso excessivo
“Observo com muita preocupaĂ§Ă£o a aplicaĂ§Ă£o excessiva do impeachment”, diz a cientista polĂtica Talita Tanscheit, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).
“Deveria ser usado como instrumento de exceĂ§Ă£o, nĂ£o ser normalizado​”.
Procedimentos diferentes
As condições para o impeachment local diferem das envolvidas no caso federal, segundo os especialistas.
Governadores, por exemplo, costumam deter maior controle sobre as Assembleias.
HĂ¡ ainda a possibilidade de negociar com um nĂºmero menor de parlamentares do que o existente em BrasĂlia.
A pressĂ£o popular, componente importante nas quedas de Collor e Dilma, nem sempre ganha intensidade nos estados.
Processos abertos perto do fim do mandato, sem grandes efeitos prĂ¡ticos, ou que podem acabar empoderando um vice problemĂ¡tico tambĂ©m se tornam frĂ¡geis.
SituaĂ§Ă£o complicada no Rio
No caso de Witzel, em que o processo de impeachment foi aberto por unanimidade entre os deputados, inclusive com o voto de parlamentares do seu partido, a chance de soluĂ§Ă£o no campo polĂtico perde força, e a esperança de salvaĂ§Ă£o passa a ser depositada na esfera jurĂdica.
Talita lembra que o governador do Rio implodiu as relações com a Assembleia ao longo de 2019 e carece de um partido polĂtico forte para sair em sua defesa.
“E hĂ¡ ainda os acenos de ClĂ¡udio Castro, que dĂ£o garantias para os parlamentares, fazem com que [o afastamento de Witzel] nĂ£o seja uma aposta no escuro”, completa, citando o vice-governador, que se elegeu pelo mesmo partido do titular e possui mais experiĂªncia na vida pĂºblica.
Para o professor Rafael Mafei, da Faculdade de Direito da USP, pedidos de impeachment sĂ£o banalizados tanto na esfera estadual quanto na federal.
“Os atores polĂticos usam processos, acusações e investigações contra seus adversĂ¡rios sempre que hĂ¡ oportunidade”, afirma.
Mafei observa, no entanto, que no plano federal hĂ¡ uma definiĂ§Ă£o maior sobre o regramento jurĂdico, com o legado dos dois casos que avançaram.
Nos estados, a falta de precedentes e as diferentes constituições locais abrem margem a questionamentos.
“O cenĂ¡rio jurĂdico Ă© menos claro”, diz.
Outra diferença, segundo o docente, Ă© que o julgamento final de governadores nĂ£o Ă© 100% polĂtico, jĂ¡ que desembargadores (membros do Poder JudiciĂ¡rio) fazem parte da comissĂ£o.
“Metade do Ă³rgĂ£o Ă© composta por pessoas que em tese tendem a ter um olhar mais sensĂvel para a configuraĂ§Ă£o jurĂdica da acusaĂ§Ă£o e para os argumentos jurĂdicos da defesa. Embora os requisitos de uma condenaĂ§Ă£o por impeachment nĂ£o sejam os mesmos de uma condenaĂ§Ă£o criminal.”
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Foto: BNC Amazonas