A ciranda da crise brasileira

O tรญtulo deste artigo faz referรชncia "a atual situaรงรฃo do paรญs, em um momento em que uma sรฉrie de medidas sรฃo tomadas". Leia Samuel Hanan

A ciranda da crise brasileira

Ednilson Maciel

Publicado em: 04/12/2024 ร s 14:02 | Atualizado em: 04/12/2024 ร s 14:02

Nรณs brasileiros, temos uma expressรฃo popular bem peculiar, muito usada quando queremos nos referir a uma situaรงรฃo em que se busca algo com bastante esforรงo sem, entretanto, alcanรงar resultado algum: โ€œร‰ o cachorro correndo atrรกs do prรณprio raboโ€.

Ela cabe perfeitamente para ilustrar a atual situaรงรฃo do paรญs, em um momento em que uma sรฉrie de medidas sรฃo tomadas โ€“ a mais barulhenta delas รฉ a reforma tributรกria, em fase de regulamentaรงรฃo no Congresso Nacional โ€“ sem resultados efetivos atรฉ agora, mesmo passados 18 meses do inรญcio do novo governo.

O paรญs vem olhando muito para a busca de soluรงรตes sem tentar enxergar prioritariamente as causas da situaรงรฃo. O governo tem resistido a entender que o foco da crise estรก no gigantismo do Estado brasileiro e no desequilรญbrio das contas internas. A mรกquina administrativa nรฃo para de crescer e de hรก muito as despesas primรกrias sรฃo maiores que as receitas.

A primeira consequรชncia, inafastรกvel, รฉ que o dรฉficit pรบblico sรณ faz aumentar. Dobrou de tamanho em 2023, fechando o ano em R$ 967 bilhรตes, ante R$ 480 bilhรตes registrados em 2022. Mais dรฉficit pรบblico significa mais dรญvida pรบblica, que jรก compromete de 77% a 79% do Produto Interno Bruto (PIB) nacional, somando cerca de R$ 9 trilhรตes.

Com o aumento da dรญvida, sobem tambรฉm os juros que o paรญs tem de pagar ao mercado financeiro. E isso eleva a dรญvida pรบblica. Vai-se, desta forma, alimentando o cรญrculo vicioso porque se a dรญvida pรบblica cresce, fica maior a taxa de risco do paรญs, o que afasta os investidores externos e provoca aumento no spread/taxa de juros.

Com tudo isso, fica menor o volume de recursos disponรญveis para prestaรงรฃo de serviรงos essenciais ร  populaรงรฃo โ€“ saรบde, educaรงรฃo, habitaรงรฃo, saneamento e seguranรงa, principalmente.

Tais serviรงos vรฃo se precarizando e ficam cada vez menos universais, criando frustraรงรฃo na populaรงรฃo, que confiou nas promessas de campanha.

A crise perdura hรก mais de 25 anos e tem vรกrias origens, menos uma: a falta de recursos financeiros.

Basta ver que os governos pรณs Constituiรงรฃo Federal de 1988 vรชm dispondo de 32% a 34% do PIB (arrecadaรงรฃo tributรกria mais de 8% a 9% do PIB a tรญtulo de dรฉficit pรบblico financiado pelo carรญssimo endividamento pรบblico).

Entre as vรกrias causas dessa situaรงรฃo hรก algumas muito evidentes, que coincidem com o pensamento de grande parte da populaรงรฃo, a comeรงar pela falta de um Plano de Metas acompanhado de avaliaรงรฃo periรณdica e transparente para fiscalizaรงรฃo do eleitor.

Somam-se a isso a tolerรขncia ร  corrupรงรฃo endรชmica e a priorizaรงรฃo da manutenรงรฃo โ€“ e ampliaรงรฃo, sempre que possรญvel โ€“ da fantรกstica fรกbrica de privilรฉgios em benefรญcio dos donos do poder, com a certeza de que governar รฉ retirar direitos da populaรงรฃo a fim de propiciar recursos para financiar a situaรงรฃo muito confortรกvel de poucos.

Alรฉm disso, temos a prรกtica constante de escamotear a verdade, escondendo-a atrรกs da falta de transparรชncia dos atos do governo, optando-se pela permanente venda de promessas que sabidamente nรฃo serรฃo cumpridas, transformando-se em meras ilusรตes.

Como se fosse coisa normal, cerca de R$ 1 trilhรฃo estรก sendo subtraรญdo anualmente dos serviรงos pรบblicos da saรบde, educaรงรฃo, seguranรงa pรบblica, habitaรงรฃo e programas sociais.

Um bom exemplo de como a coisa pรบblica nรฃo รฉ levada a sรฉrio, mesmo nos setores mais sensรญveis ร  sociedade, รฉ o Plano Nacional de Educaรงรฃo, criado pela Lei nยบ 13.005, de 2014, com 20 metas nunca cumpridas na integralidade e agora substituรญdas pelo novo PNE de 2024. A meta 6 original previa que atรฉ 2016 seria oferecido ensino em tempo integral em pelo menos 50% das escolas pรบblicas, mas o Censo mostrou que em 2022 apenas 6,9% das escolas contavam com esse avanรงo. Outro caso: a meta 20 previa ampliar o investimento pรบblico em educaรงรฃo pรบblica de forma a atingir, no mรญnimo, 7% do PIB atรฉ 2019 e 10% do PIB em 2024. Mera ilusรฃo: em 2023, o investimento em educaรงรฃo nรฃo passou de 5,5% do PIB, ficando, portanto, muito aquรฉm da meta.

A ciranda da crise segue girando e, diante do desgaste, o governo opta por criar narrativas, apontando vilรตes como os responsรกveis pelos maus resultados, reeditando o discurso de heranรงas malditas, sem jamais realizar um mea-culpa. Parece haver uma necessidade incontrolรกvel de seguir vendendo ilusรตes e, com isso, se acentua o distanciamento da verdade.

ร‰ sempre possรญvel, no entanto, transformar o cรญrculo vicioso em virtuoso. Possรญvel e necessรกrio, para que o paรญs nรฃo siga patinando e reencontre o caminho do desenvolvimento porque sรณ assim a populaรงรฃo poderรก resgatar a esperanรงa de uma vida mais digna.

O ponto de inflexรฃo, sem dรบvida, รฉ garantir mais transparรชncia. ร‰ fundamental trabalhar com a verdade, enterrando-se de vez a prรกtica de criaรงรฃo de narrativas que ao final se revelarรฃo estรฉreis com a evoluรงรฃo dos fatos.

O Brasil reclama tambรฉm um compromisso firme e inadiรกvel de combate ร  corrupรงรฃo, mal que nunca deixou de existir no paรญs, deixando um rastro de enormes prejuรญzos aos cofres pรบblicos. Sem o seu combate sรฉrio e efetivo, sempre reinarรก a impunidade e permanecerรก a sensaรงรฃo de que o crime compensa, em uma perigosa sinalizaรงรฃo ร s novas geraรงรตes, afastando da boa polรญtica as pessoas de bem. Porรฉm, meros discursos nรฃo bastam. Sรฃo necessรกrias mudanรงas legislativas para tornar imprescritรญveis os crimes cometidos contra a administraรงรฃo pรบblica, impor maior rigor ร  Lei da Ficha Limpa, e reduzir drasticamente o nรบmero de pessoas com foro por prerrogativa de funรงรฃo.

Estima-se que a corrupรงรฃo consuma entre 2% e 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro. Embora o desejรกvel fosse reduzir a perto de zero , admitindo- se realisticamente a reduรงรฃo pela metade, o Brasil teria uma economia de R$ 150 bilhรตes/ano em recursos pรบblicos que hoje escoam pelo ralo. Apesar disso, hรก cerca de dois anos nรฃo se vรช atuaรงรฃo nesse sentido. Os esforรงos da Polรญcia Federal parecem estar concentrados apenas na questรฃo da venda de joias pelo ex-presidente e na apuraรงรฃo dos lamentรกveis episรณdios de 8 de janeiro de 2023 em Brasรญlia.

Enquanto isso, outros escรขndalos passam sem alarde, como os indรญcios de direcionamento de recursos orรงamentรกrias para atender interesses particulares de um ministro de Estado; a polรชmica concorrรชncia para importaรงรฃo de 263 mil toneladas de arroz, vencida por empresas sem capacidade tรฉcnica e que acabou cancelada pelo governo; e a transaรงรฃo com concessรฃo de energia tรฉrmica no Amazonas, envolvendo um passivo de bilhรตes de reais ao final assumido pelo governo e, รฉ claro, pago pelo contribuinte. O grande humorista Jรด Soares (1938-2022) dizia algo muito sรฉrio: โ€œA corrupรงรฃo nรฃo รฉ uma invenรงรฃo brasileira, mas a impunidade รฉ coisa muito nossaโ€. Aprendamos com ele.

Para interromper a ciranda da crise tambรฉm รฉ fundamental reduzir os gastos com funcionalismo pรบblico que hoje consomem 12,8% do PIB. Um grande avanรงo seria limitar essa despesa a 9,8% do PIB, mรฉdia registrada pelos 37 paรญses da Organizaรงรฃo para a Cooperaรงรฃo e Desenvolvimento Econรดmico (OCDE), o que poderia ser feito por meio da reduรงรฃo de privilรฉgios e com os nรฃo-concursados, gerando economia de R$ 340 bilhรตes/ano.

ร‰ essencial, ainda, reduzir os gastos tributรกrios da Uniรฃo dos atuais 4,8% para 2% a 2,5% do PIB, o que garantia economia de R$ 320 bilhรตes/ano.

Outra providรชncia que se impรตe รฉ tornar as eleiรงรตes menos onerosas. Isso pode ser feito limitando os recursos dos fundos partidรกrio e eleitoral e acabando com a reeleiรงรฃo para cargos do Poder Executivo.

Essas poucas โ€“ porรฉm necessรกrias e contundentes โ€“ medidas seriam capazes de propiciar, sozinhas, a reduรงรฃo de despesas da ordem de R$ 810 bilhรตes/ano. Representariam um grande passo rumo ร  austeridade e ร  responsabilidade orรงamentรกria, fundamentais para o Brasil superar a crise e visualizar um horizonte mais positivo para o paรญs e sua populaรงรฃo, com maior eficiรชncia administrativa, mais desenvolvimento e menos pobreza.

*O autor รฉ engenheiro com especializaรงรฃo nas รกreas de macroeconomia, administraรงรฃo de empresas e finanรงas, empresรกrio, e foi vice-governador do Amazonas (1999-2002). Autor dos livros โ€œBrasil, um paรญs ร  derivaโ€ e โ€œCaminhos para um paรญs sem rumoโ€. Site: https://samuelhanan.com.br

Foto: reproduรงรฃo/internet