Inara Nascimento, indígena do povo sateré-mawé, defendeu tese de doutorado sobre soberania e segurança alimentar e nutricional entre povos indígenas em contexto urbano.
Essa população cresceu nos últimos quinze anos. Segundo o censo do IBGE realizado em 2007, a população indígena declarada era de 896 mil, dos quais 36,2% viviam em centros urbanos.
Segundo o censo de 2022, a população indígena brasileira atual é de quase 1,7 milhão de pessoas declaradas. Desse total, 53%, cerca de 900 mil, vivem nas cidades.
O aumento expressa o crescimento das ameaças socioambientais aos territórios, como as que surgem com o avanço de diferentes mercados ilegais de garimpo, drogas, armas, pessoas, madeira etc.
E, também, expressa a busca por melhores serviços públicos, como saúde e educação, que são limitadas dentro das terras indígenas.
Entre os impactos de viver fora de seus territórios está a manutenção da alimentação culturalmente orientada.
Para os povos indígenas, a comida não é apenas alimento para o corpo, mas para o espírito, e é fundamental para a construção de territórios culturais nas cidades.
É o que demonstra a tese defendida pela antropóloga Inara Nascimento, em 14 de janeiro, na Universidade Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
Leia mais
Território: nosso corpo, nosso espírito
Inara é do povo sateré-mawé e segue o caminho apontado por outras acadêmicas que fazem parte do movimento de mulheres indígenas desde a primeira marcha de mulheres indígenas, ocorrida em 2021, em Brasília (DF), cujo tema foi “Território: nosso corpo, nosso espírito”.
O conceito de território como corpo e espírito expressa que uma pessoa será indígena em qualquer lugar, pois seu corpo e seu espírito serão o seu território quando este lhe faltar por algum motivo.
A ideia se coloca como oposição de um preconceito fortemente arraigado em nossa sociedade de que os indígenas que vivem nas cidades perdem sua cultura.
A tese de Inara nos mostra que os indígenas que vivem em cidades buscam criar espaços para cultivar seus territórios-corpos-espíritos.
Uma das principais formas de fazer isso é pela partilha da comida e pelo ato de comer junto.
Contudo, o acesso a alimentação suficiente e culturalmente orientada são um desafio para aqueles que vivem em contexto urbano.
A pesquisa que tem como título “Wanhikynyi, ya’re’: tem comida! A produção de conhecimento sobre soberania alimentar e segurança alimentar e nutricional desde a perspectiva dos povos indígenas”, destaca a importância das mulheres indígenas nesse processo.
Leia mais
Obra de Carmezia Emiliano Macuxi/reprodução
Wanhikynyi, ya’re’: tem comida!
A pesquisa de Inara foi realizada a partir de famílias da Associação Cultural Indígena do Estado de Roraima, a mais antiga a representar indígenas de diferentes etnias que vivem na cidade de Boa Vista.
O diagnóstico sobre segurança alimentar e nutricional feito com essas famílias concluiu que havia insegurança alimentar e nutricional de leve a moderada, o que significa que existe escassez de alimentos.
Contudo, na perspectiva das mulheres indígenas, que são as principais responsáveis pelos processos envolvidos na alimentação e pela transmissão dos saberes ancestrais, a escassez não é sinônimo de fome.
Para os povos indígenas, a vida como um todo é feita de ciclos, nos quais há escassez e há abundância.
A sazonalidade reflete a relação profunda das comunidades com os ciclos naturais e a biodiversidade de seus territórios.
Na cidade, a sazonalidade está relacionada a ter ou não dinheiro para comprar alimentos.
Assim, a dinâmica entre escassez e abundância pode ser percebida de forma mais aguda.
No entanto, para os povos indígenas em contexto urbano o acesso à comida transcende a mera questão financeira.
Inara aponta que práticas como a troca, o cultivo em quintais e o compartilhamento coletivo de alimentos na associação garantem a alimentação das famílias.
“Assim, espaços como as malocas, os girais, os fogareiros e as cozinhas comunitárias emergem como locais de poder, tomada de decisão e resistência, contribuindo para a construção da soberania alimentar.
São lugares onde a comida se torna teoria, e os sabores são expressões do território, corpo e espírito, fundamentais para a afirmação de uma forma de soberania alimentar desde os povos indígena”, afirma Inara.
Desse modo, essa perspectiva indígena de vida em coletividade reforça a relação entre alimentação, cultura e território e torna-se um meio de proteção aos seus modos de vida na cidade.
“Dessa forma, desde nossa cosmopercepção, a fome não nos pertence”, conclui Inara.
Fotos: divulgação