Como agro e marco temporal levam guerra às terras indígenas

Violência explode com avanço de fazendeiros, grileiros e sabotagem à demarcação de territórios.

Publicado em: 30/07/2025 às 10:24 | Atualizado em: 30/07/2025 às 10:39

Milícias, emboscadas, tiros e tratores: esse é o cenário descrito por indígenas diante do avanço simultâneo do agronegócio e da tese do marco temporal sobre seus territórios.

Os dois fatores atuam juntos. De um lado, o agronegócio estimula invasões, abrindo caminhos para o lucro com plantio, mineração e especulação. De outro, a Lei 14.701/2023, que institui o marco temporal, enfraquece a proteção legal das terras indígenas, paralisando demarcações e aumentando a insegurança jurídica.

“É como uma zona de guerra”, afirma a antropóloga Lúcia Helena Rangel, do Conselho Indigenista Missionário (Cimi).

Violência em alta

No relatório anual divulgado nesta segunda-feira (28), o Cimi contabilizou 211 assassinatos de indígenas em 2023. A entidade relaciona diretamente o aumento da violência à aprovação da nova lei. “Eles entram armados, com caminhão, trator e atirando”, relata Rangel.

A antropóloga afirma que o agronegócio é o principal vetor da violência em estados como Roraima, Amazonas e Mato Grosso do Sul.

“Tem milhões e milhões de hectares plantados, mas o alvo é sempre a terra indígena, que não é respeitada por ninguém.”

Nova lei trava demarcações e favorece invasores

A Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) confirma que todos os 304 territórios ainda não regularizados estão impactados pela lei do marco temporal. Segundo a fundação, a exigência de identificar previamente todos os interessados na terra antes da visita técnica é impraticável, especialmente na Amazônia Legal.

Outro problema está na permissão para que peritos externos acompanhem os trabalhos de campo. Isso abriria brechas para que grileiros ou fazendeiros influenciem diretamente o processo.

Para a Funai, essa regra pode inviabilizar o Grupo de Trabalho, que depende de confiança mútua com os povos para realizar estudos e delimitar as terras.

Indígenas isolados

A exploração desenfreada das terras também atinge os povos isolados. O relatório do Cimi registrou 119 situações de risco apenas na Amazônia Legal.

“Essas terras estão sendo exploradas de forma desordenada, com foco em ganhos imediatos”, alerta a antropóloga.

O chamado “PL da devastação”, aprovado neste mês de julho, é outro fator que acirra a tensão. Para Rangel, ele “abre as terras para exploração de tudo” e ameaça a sobrevivência dos povos isolados.

Além disso, a nova legislação prevê indenização pela terra nua aos ocupantes não indígenas, o que pode aumentar a pressão por invasões e dificultar ainda mais os processos de demarcação.

De acordo com a Funai, não se sabe nem de onde virá o dinheiro para pagar essas indenizações, que também aponta falta de pessoal e orçamento para cumprir as novas exigências legais.

STF travado

Mesmo após o Supremo Tribunal Federal (STF) considerar o marco temporal inconstitucional, o Congresso aprovou a lei, em clara afronta à decisão. Desde então, o ministro Gilmar Mendes criou uma câmara de conciliação para rediscutir o tema. O grupo, porém, encerrou os trabalhos sem definição, e os indígenas se retiraram em protesto.

Enquanto o Judiciário não decide os rumos da lei, a violência continua. Para o Cimi, o marco temporal, aliado à expansão do agro, não só alimenta a guerra nas terras indígenas, mas institucionaliza a violação de direitos.

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Foto: Antônio Cruz/Agência Brasil.