O Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM) suspendeu decisão de juiz de primeira instância de Tabatinga e devolveu a guarda de bebê tikuna aos pais. A criança indígena ten 3 meses de idade. A ação que levou à decisão foi da Defensoria Pública do Estado (DPE-AM).
O bebê foi retirado dos pais quando o casal, morador da comunidade Belém do Solimões, zona rural de Tabatinga, procurou atendimento de saúde ao filho na cidade.
A criança apresentaria sinais de desnutrição e desidratação.
O conselho tutelar de Tabatinga, diante disso, denunciou os pais ao Ministério Público do Amazonas (MP-AM).
E que, diante do quadro de saúde da criança, os pais estavam resistindo a permitir a transferência para tratamento em Manaus.
Dessa maneira, a promotora do MP acionou a Justiça para tirar a criança da guarda dos pais, o que foi deferido.
Como resultado, o bebê foi logo levado para Manaus, sem seus pais.
O casal só fala a sua língua nativa, mas compreende a português.
Além dessa dificuldade, a Funai não foi acionada para participar desse processo, conforme a ação da DPE.
Diante desses fatos, o desembargador Paulo César Lima, da primeira câmara cível do TJ-AM, julgou que a retirada da criança dos pais foi uma medida precipitada.
A ação, um agravo de instrumento, foi assinada pelo defensor público
Leandro Antunes Zanata, da defensoria do alto rio Solimões.
Zanata afirmou ao magistrado que houve ruído de comunicação e barreira cultural no atendimento da criança nos órgãos públicos.
Ademais, afirmou que a participação da Funai no caso era obrigatória.
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Descaso institucional
Conforme o defensor, os pais indígenas foram mal orientados pelos órgãos públicos quando, desesperados, buscaram socorro de saúde para o filho.
“Sofreram todo tipo de descaso institucional e agora foram alijados do convívio com o filho”, disse.
Zanata afirmou ainda que, como decorrência, a decisão do juiz, de suspensão do poder familiar e acolhimento institucional, foi medida extrema.
“De forma açodada, sem a realização do contraditório prévio que o caso exigia e sem base em elementos sólidos, tendo sido ignoradas as questões étnico-culturais do caso e sem o respaldo em provas suficientes da intenção de maus tratos”, afirmou o defensor.
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Ruído de comunicação
De acordo com a DPE, no atendimento inicial, no Dsei em Belém do Solimões, o enfermeiro não relatou a suposta desidratação grave que a criança apresentava.
Após aplicar hidratação na veia, o atendente do posto médico liberou o bebê e seus pais para casa.
Dois dias após o atendimento, a família recebeu a visita da psicóloga e do enfermeiro.
O quadro de saúde da criança já tinha piorado.
“Se a criança, de fato, estivesse com o quadro de saúde bem debilitado, como afirmou a psicóloga ao conselho tutelar, os pais, durante o atendimento, jamais teriam impedido o deslocamento do filho até a unidade hospitalar de Tabatinga, já que eles mesmos haviam procurado o posto para atendimento”, afirmou o defensor.
Para Zanata, os profissionais nada questionaram sobre a questão de saúde da criança.
“Todas as perguntas foram direcionadas para saber sobre a vida do casal”.
Com base nisso, acredita que, durante a visita dos funcionários do Distrito de Saúde Indígena (Dsei) – que não estavam acompanhados de intérpretes, tenha ocorrido um ruído na comunicação.
“Em nenhum momento, os genitores negligenciaram os cuidados com o filho ou apresentaram qualquer tipo de resistência na transferência para tratamento”, disse Zanata.
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Crença em possessão
De acordo com o defensor, a mãe, inclusive, informou aos funcionários que a criança havia piorado um pouco e que levariam o filho ao rezador, pois suspeitavam que ele estivesse possuído por um espírito vingativo, levando em consideração que o pai havia visitado a casa de um caçador que recentemente tinha matado um macaco.
“Acreditavam piamente que a piora do filho era em decorrência desse infortúnio. Veja-se que há aspectos culturais que demandam análise cautelosa e que foram completamente ignorados no caso”, disse o defensor.
Uma crença tikuna, por exemplo, diz que as crianças podem nascer com algumas características de animais.
Em função da sua condição física, os pais relataram que acreditavam que o filho teria nascido como o coatá, uma espécie de macaco magro.
Zanata, portanto, disse que a atuação da Funai era necessária para que o poder familiar sobre a criança fosse retirado, o que não aconteceu.
Essa manifestação veio depois, com a Funai, com base em parecer antropológico, apontando que os pais não foram negligentes com o filho.
“Pelo contrário, os próprios genitores buscaram o atendimento especializado e, não tendo ocorrido a melhora, voltaram-se às crenças de seus antepassados”.
Na decisão que restituiu o poder familiar aos pais, o desembargado citou a manifestação da Funai, que reconheceu que eles “se portaram de acordo com suas crenças e forneceram o tratamento que julgam ser adequado”.
Os pais agora estão em Manaus acompanhando a criança.
*Com informações da DPE.
Foto: Rovena Rosa/Agência Brasil