São Gabriel da Cachoeira está sob o maior depósito mundial de nióbio, o mineral que se tornou uma obsessão para o presidente Jair Bolsonaro e para a extrema direita brasileira.
São 2,9 bilhões de toneladas no subsolo, nunca explorados.
Sobre a jazida, montanhas, formações rochosas de diversos formatos, orquídeas e lagoas de diferentes cores compõem uma das regiões mais singulares da Amazônia, distante da infinita planície verde associada à região.
Leia mais
A exploração do nióbio em Seis Lagos tem dois obstáculos quase intransponíveis.
Pela legislação atual, Seis Lagos está fora do alcance da mineração.
O local está incluído em três áreas protegidas e sobrepostas: além da Terra Indígena (TI) Balaio, a área pertence ao Parque Nacional Serra da Neblina e à Reserva Biológica Morro dos Seis Lagos, esta do governo do Amazonas.
Nenhuma dessas categorias permite a atividade.
Outro impeditivo à exploração do nióbio amazônico está na demanda.
As projeções são unânimes em afirmar que as reservas atuais em exploração têm capacidade para atender ao mercado mundial durante várias décadas.
O Brasil já é o principal produtor mundial, com 88% do total, segundo o Serviço Geológico dos EUA.
A maior parte do nióbio vem da CBMM (Companhia Brasileira de Metalurgia e Mineração), sob controle da família sócia do Itaú Unibanco, localizada em Araxá (MG).
A empresa estima ter reservas para produzir por pelo menos mais dois séculos.
“Não existe interesse de mineradoras no Morro de Seis Lagos”, afirma o geólogo Tadeu Veiga.
Atualmente, professor voluntário da UnB (Universidade de Brasília), ele esteve na região em 1997, representando uma empresa de mineração.
À época, a CPRM (Serviço Geológico do Brasil) tinha a intenção de licitar os direitos minerários, mas os planos nunca foram adiante.
Bolsonaro quer abrir mineração
Apesar da falta de mercado para um eventual aumento da produção, Bolsonaro costuma usar o nióbio como justificativa para abrir a mineração em terras indígenas – a atividade está permitida pela Constituição, desde que regulamentada e após consulta prévia aos povos afetados.
Em 2016, quando se preparava para a campanha presidencial, Bolsonaro produziu um vídeo sobre o nióbio, gravado em Araxá.
Com um pedaço de mineral nas mãos, disse: “Isto pode nos dar independência econômica.”
Em outro trecho, menciona a demarcação de terras indígenas como uma barreira à exploração mineral.
Presidente divulgou informação errada
A declaração mais recente foi em junho de 2019.
Do Japão, onde participava a reunião do G20, Bolsonaro exibiu uma bijuteria com nióbio durante transmissão pelo Facebook.
Disse que o cordão valia R$ 4 mil, mais caro do que ouro.
A informação está errada.
Um grama de ouro (R$ 293 no final de maio) é mais caro do que um quilo de ferronióbio (cerca de R$ 215), o produto mais caro da CBMM.
Enéas Carneiro é o mentor
A falsa noção de que o nióbio é a panaceia para a economia brasileira tem origem no líder ultranacionalista Enéas Carneiro, cujas ideias influenciam o bolsonarismo.
“Só o nióbio permitir-nos-ia ter uma moeda própria, lastreada nele”, disse, em uma entrevista em 2006, um ano antes de morrer.
Em fevereiro, Bolsonaro enviou ao Congresso um projeto de lei sobre a abertura de terras indígenas para mineração.
A proposta, criticada pela maior parte do movimento indígena, prevê que os povos afetados terão poder de veto em caso de garimpos, mas não de grandes projetos mineradores.
Ao justificar o projeto à época, Bolsonaro disse que “[o indígena] tem coração, tem sentimento, tem alma, tem necessidade e tem desejos e é tão brasileiro quanto nós”.
Garimpos ilegais avançam
A promessa de legalização tem estimulado a invasão de garimpeiros, aliada à orientação de Bolsonaro para frear operações do Ibama.
Em abril, dois coordenadores de fiscalização do órgão ambiental foram demitidos em represália ao fechamento de garimpos em terras indígenas localizadas na região do Médio Xingu, no Pará.
Impulsionados também com a alta de preço do ouro, os garimpos ilegais crescem nas TIs Raposa/Serra do Sol (RR), Yanomami (RR/AM) e Munduruku (PA), entre outras.
A TI Balaio não tem garimpo, mas é rota de garimpeiros rumo a explorações ilegais de ouro na TI Yanomami e na Venezuela.
Para isso, contam com a vista grossa da barreira do Exército na estrada, que não os barra.
A reportagem constatou que os militares parecem apenas preocupados em identificar estrangeiros. Na comunidade Ya-Mirim, ao menos três garimpeiros aguardavam transporte.
Lideranças políticas divergem
Politicamente distante da Foirn, o prefeito de São Gabriel da Cachoeira, Clóvis Saldanha (PT), o Corubão, do povo tariano, se elegeu prometendo regularizar garimpeiros indígenas – a tividade que ele mesmo já exerceu.
Ao assumir, em 2018, criou o Departamento de Pequena Mineração Responsável, com o objetivo de fomentar a atividade sem grandes empresas.
Na assessoria do departamento, está Cisneia Menezes Basilio.
Do povo desana, é a primeira geóloga indígena do país, após se formar pela Ufam (Universidade Federal do Amazonas).
Basilio afirma que a região tem uma grande diversidade geológica, mas ainda pouco estudada.
Cita ocorrências de tantalita (usado na indústria tecnológica) e ouro, além de pedras como ametista, quartzo, turmalina e água-marinha. Assim como outros especialistas, ela não vê viabilidade na exploração de nióbio em Seis Lagos.
Na prefeitura, a geóloga diz que o objetivo é estimular a incipiente produção de biojoias por meio da capacitação de artesãos e levar informação sobre exploração mineral e legislação às comunidades.
“Quando as comunidades souberam da existência do departamento e que tinha uma geóloga, eles começaram a vir com as suas amostras para tentar identificar o que era, querendo saber de preço, achando que aquele cascalho de quartzo, de ametista ou aqueles farelinhos de tântalo poderiam mudar as suas vidas”, diz, em entrevista no seu escritório, onde guarda várias dessas amostras.
“O povo de São Gabriel não está carente de liberação ou de mineração, mas de informação. O que está tramitando no Congresso é mineração em grande escala, e muitas vezes o nosso povo lá da base entende que é algo que eles vão trabalhar, algo que irá beneficiá-los diretamente. A gente sabe que não é verdade”, afirma.
“A gente não os ilude, pelo contrário. O papel do departamento é esclarecer essa população sobre os seus direitos previstos na Constituição de 1988 e ver as possibilidades de atividades em que o indígena possa ser protagonista no usufruto dos seus recursos naturais.”
Leia mais no Folha de S.Paulo
Foto: Lalo de Almeida/Folhapress