Na manhã de 4 de dezembro, em Manaus, 19 pessoas transsexuais e indígenas receberam do Tribunal de Justiça do Amazonas (TJ-AM ) uma nova certidão de registro civil, com alteração de prenome, de gênero e a inclusão de etnia para integrantes do grupo LGBTQIAPN+.
O evento foi parte da campanha “Etnicidade indígena: comunidade plural”, coordenada pela Corregedoria-Geral de Justiça (CGJ-AM), em parceria com o Instituto de Estudos de Protesto de Títulos do Brasil – seção Amazonas e a Comissão LGBTQIAPN+ da Caixa de Assistência dos Advogados do Amazonas, da OAB-AM.
A ação conjuga duas importantes vitórias para pessoas indígenas que são dissidentes de gênero, pois tanto a legislação que assegura que a etnia conste em registro civil quanto a que permite o nome social para pessoas trans são recentes.
Apenas em 2012, a resolução conjunta 3 dos conselhos nacionais de Justiça e do Ministério Público passou a garantir que a etnia e a aldeia de moradia dos pais da pessoa registrada pode ser lançada como sobrenome no registro e na certidão de nascimento.
Pessoas ciganas ou quilombolas não são contempladas nessa legislação ou em qualquer outra quanto à declaração de etnia no registro civil de nascimento ou certidão.
A legislação que assegura que pessoas trans possuam nome social em seus documentos oficiais entrou em vigência apenas em 2016 (decreto 8.727).
Assim sendo, a conquista dessas 19 pessoas é bastante representativa da luta por direitos dessas populações, trans e indígenas.
Igualmente, é importante para a visibilidade desse segmento pouco conhecido para além das trincheiras de suas lutas.
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Indígenas LGBTQIAPN+
Não raro, a existência de pessoas indígenas LGBTQIAPN+ é. compreendida como uma demonstração de ‘assimilação” ou “aculturação” de povos indígenas. Contudo, o que está subjacente é a noção ocidental de gênero e sexualidade.
A vida sexual dos indígenas já chamava atenção nos primeiros registros da invasão colonial.
A divergência entre o que os europeus consideravam como comportamentos adequados para o gênero masculino e feminino também.
Por exemplo, a prática sexual entre homens e os cabelos compridos usado pelos homens tupinambás chegaram a ser proibidas por meio de decretos no século 17.
Portanto, noções de gênero feminino e masculino e de uma única sexualidade válida, a heterossexual, não são universais, divergindo de um povo para outro.
Na maioria dos casos, não há tradução desses termos nas línguas indígenas.
Tais noções fazem parte do processo colonial e de um projeto de civilização europeu sobre o território que hoje conhecemos como Brasil.
E foram reforçadas a partir da conversão ao cristianismo dos povos indígenas. Sendo assim, é possível afirmar que “os brancos” levaram a vergonha, o preconceito e, em alguns casos, a discriminação para as aldeias.
Movimentos recentes de formação de coletivos em diferentes contextos, urbanos ou não, tem sido fundamentais para a visibilidade de pessoas indígenas LGBTQIAPN+.
Tais coletivos, como Miriã Mahsã, formado por indígenas de diferentes etnias, principalmente do alto rio Negro, no Amazonas, são importantes catalisadores da luta por direitos.
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Lideranças indígenas trans
Recentemente, Majur Harachell, 33 anos, da etnia bororo, vivente no Mato Grosso, foi eleita cacica, sendo a primeira cacica trans do Brasil.
Majur se destaca pela luta por acesso a água em seu território. Recentemente, conseguiu que fossem construídos cinco poços artesianos no território Tadarimana, composto por 604 habitantes distribuídos em oito aldeias da etnia boe bororo.
Majur também enfrenta desafios relacionados a sua identidade de gênero, como a participação em atividades destinadas a mulheres, para as quais, comumente, ela não é convidada.
Outra importante referência indígena trans é Paola Abache, 24 anos, da etnia warao.
Ela migrou para o Brasil em 2019 movida pela oportunidade de começar sua transição de gênero.
Já transicionada, Paola foi cacica por sete meses do maior abrigo indígena da América Latina, o Waraotuma a Tuaranoko, com capacidade para 1.500 pessoas, mas que já abrigou 2.000.
Em 2023, Paola foi eleita a Miss Trans da parada LGBTQIA+ de Roraima, sendo uma conquista importante para visibilidade de indígenas trans e também para os indígenas waraos refugiados no Brasil.
Foto: divulgação/TJ-AM