Seca histórica deixa em terra o legendário navio Justo Chermont
Agora, o navio que já serviu de cenário para várias produções do cinema se expõe nu, na terra, para turistas e curiosos, no Porto da Manaus Modena

Wilson Nogueira, especial para o BNC Amazonas
Publicado em: 24/10/2023 às 07:02 | Atualizado em: 24/10/2023 às 07:02
O navio que transportou Alberto, protagonista do romance A Selva, de Ferreira de Castro (1898-1974), de Belém do Pará até o Seringal Paraíso, no rio Madeira, existiu, existe e ainda resiste. O Justo Chermont agora está está em terra, no porto regional Manaus Moderna. Ficou assim em razão da seca histórica no rio Negro.
O az da gloriosa era da navegação a vapor na Amazônia descansa ao lado do moderno porto flutuante construído pelos ingleses, roadway, para dar suporte ao vaivém de mercadorias e pessoas entre países europeus e Manaus, de onde eram baldeadas para os seringais.
Construído na Inglaterra, em 1898, o gaiola simbolizava, também, as realizações tecnológicas da segunda revolução industrial (1870-1914).
O charme, a elegância e o apartheid no Justo Chermont combinavam com os ares da Belle Époque amazônica, inventada no lastro do fausto do primeiro ciclo da borracha (1880-1914).
A ocupação dos espaços do navio representava – e ainda representa – a distribuição injusta da renda obtida com o trabalho de milhares de migrantes, em sua maioria brasileiros do Ceará e do Maranhão. Estes recorriam à selva amazônica motivados pelo desejo de fugir da estiagem (1877-1979), sair da miséria ou até enriquecer com a coleta do látex da seringueira.

A parte de cima da embarcação estava reservada a passageiros de primeira classe. Eles eram proprietários de seringais, funcionários do Estado e ricos bolivianos de volta à terra nativa.
Nessa área, descreve o narrador: “ […] apenas ao centro se fechava por curta fila de camarotes; a popa se abria dum lado ao outro e jantar ali, na longa mesa onde branqueijavam cristais de copos e garrafas, ou adormecer embalado numa rede, sob a tépida da noite amazonense, devia ser relado de truz [uma maravilha], inesquecível por muito que se vivesse”.
Já o convés de baixo: “[…] era úmido, sujo e escorregadio. Dir-se-ia que o visco fluido e repulsivo exalava de toda a parte, estendendo-se sobre a pele”. Seus ocupantes–tabaréus ignaros, gente destinada a vários seringais do Madeira – disputavam espaços com mercadorias, equipamentos de bordo e bois que ao longo da viagem seriam mortos para abastecer a cozinha.
Ao zarpar do porto de Belém, na baia de Guajará, o Justo Chermont atravessa a bacia do Marajó, nas bordas do Atlântico, e entra no Amazonas. Faz paradas em Santarém, Alenquer, Óbidos, Parintins, Itacoatiara e Manaus, no rio Negro, para descarregar mercadorias às casas aviados. Depois, retorna ao rio Amazonas, para, acima de Itacoatiara, sulcar as águas do rio Madeira.
No Madeira, o gaiola dos seringais amazonenses aportou em Borba, Manicoré, Humaitá e Seringal Paraíso, o fim da sua linha de quinze dias.
É durante essa viagem que Alberto, um português de Lisboa, de 26 anos, depois de rápida estada em Belém, descreve, com espanto, seus primeiros contatos com os rios e florestas amazônicos.
“Tudo selva, selva por toda parte fechando o horizonte na primeira curva do monstro líquido”.

Viajante da classe dos futuros seringueiros, Alberto pôde vivenciar as aspirações, os medos e as expectativas da vida no seringal. Entre cearenses e maranhenses, ele era o único branco no convés de baixo. Este marcado pelo fedor insuportável causado pela insalubridade, enquanto “em cima” os barões da borracha se serviam de confortáveis camarotes e se fartavam em boas comidas e bebidas caras.
No porto de Manaus, onde o navio baixou ancora a certa distância, para evitar fugas dos homens aliciados pelo “coiote” Balbino, Alberto se depara com uma cena que mistura o mundo real a mundos imaginários.
“A baia [do rio Negro] continuava a ser, para todos eles [migrantes], uma miragem deslumbradora onde estremeciam fantásticos mundos de luminosidade e de sombras: ao espelharem-se nas águas as vigias pareciam dar acesso a oníricas profundidades e as linhas dos barcos adquiriam expressões de palácios orientais. Dum dos navios ancorados chegava um som roufenho de um charmonium, persistente e monótono como a cantilena da própria neurastenia”.
Os navios
O Justo Chermont e outros navios gaiolas se destacavam na paisagem amazônica. Eram retratos das contradições sociais da economia do látex extraído da natureza com suor e sangue da servidão moderna.
Imagens que podem ser comparadas às do encantamento do ribeirinho por um navio desconhecido todo iluminado, em noite de pescaria solitária. Curioso, ele se aproxima da misteriosa embarcação e observa que seus ocupantes, homens e mulheres brancos e bem-vestidos, comem, bebem e dançam.
Inesperadamente, ele é convidado para o banquete, desde que se sirva no convés de baixo, onde já estão outros pescadores. Lá, ele também enche o estômago dos restos de comida e vinhos saborosos que descem do andar de cima. Quando acorda, está só e com a barriga roncando de fome.

A última citação do Justo Chermont no romance está na abertura do capítulo final, no qual homens e mulheres de pele amarela, ao invés de descerem no Seringal Paraíso, seguem rio acima. Não eram maranhenses nem cearenses. Nem os índios “pacificados” pelo marechal Rondon. Eram japoneses que iriam cultivar terras de seringais falidos e novas terras no Madeira.
Sinal de que a economia do látex estava em irreversível insolência. Os seringalistas que ainda permaneciam, depreciavam cada vez mais o trabalho dos seringueiros. Isso era para compensar a queda do preço da borracha no mercado internacional.
Novo tempo
O Justo Chermont se eternizou em A selva, romance traduzido para diversas línguas ao redor do mundo. Fora das páginas, o vapor envelheceu em relação às novas gerações de navios, movidos a petróleo, maiores, mais rápido e mais seguros. Assim como a borracha, perdeu importância na movimentação da economia amazônica.
O orgulho da Amazon River (companhia inglesa de navegação) – ou curral flutuante, para o narrador –, o Justo Chermont reapareceu, já reformado, à cena cultural amazônica, em 1970, como uma das locações do filme A selva, do cineasta amazonense Márcio Souza.
Em 2022, compõem o cenário de A Selva, do cineasta português Leonel Vieira, produção luso-hispano-brasileira, com Chico Diaz e Maitê Proença como protagonistas.

Em 2007, o navio aparece na minissérie brasileira Amazônia, de Galvez a Chico Mendes ( Glória Perez), produzida pela TV Globo e exibida no mesmo, em em 55 capítulos.
A última aparição glamourosa do Justo Chermont é de 2009, no filme Diários de Motocicletas, de Walter Sales. Ele conta a história do revolucionário Che Guevara (Gael Garcia Bernal) e seu amigo Alberto Granado (Rodrigo de la Serna), em viagem de motocicleta pela América do Sul.
Antes de atracar no porto Manaus Moderna, para uma reforma que ainda não aconteceu, o navio fazia viagens de turismo, nas quais se incluía como atração principal, com o convés de baixo convertido para abrigar gente do convés de cima.
Sem manutenção recente, o navio que já serviu de curral de bois e humanos – e foi cenários da criativa indústria cinematográfica – se deteriora, consumido por placas de ferrugem. E agora jogado para terra pela vazante do rio Negro se expõe nu, para turistas e curiosos.
Em 2015 (a Crítica), o Justo Chermont ainda ostentava uma placa de venda, como telefone para contrato.

Perfil do padrinho
Justo Chermont é homônimo de Justo Pereira Leite Chermont, nascido em Belém do Pará, em 1857.
Ele participou do movimento republicano no seu estado.
Foi deputado provincial em 1880 e, com a Proclamação da República, foi escolhido governador do Pará entre 1889 e 1891.
Na presidência do marechal Deodoro da Fonseca foi ministro dos Negócios Estrangeiros.
Foi senador durante um longo período (1894-1900; 1900-1909; 1921-26).
Tentou, sem sucesso, a vice-presidência da república, nas eleições de 1902, na chapa republicana dissidente de Quintino Bocaiúva, apoiado pelos Partidos Republicanos do Pará, Pernambuco e pelo Partido Republicano Fluminense.
Retornou ao Senado para o mandato de 1921 a 1926, ano em que faleceu, no dia 2 de abril.
Retorno às águas e ao turismo
O proprietário do Justo Chermont, empresário Daílton Cabral, disse que o navio ficou em terra porque as águas do rio Negro subiram rapidamente.
“Houve descuido do funcionário responsável pelo navio com a descida veloz do rio”, explicou.
Os rios Negro, Solimões e Madeira enfrentam a maior seca histórica, que alcança o primeiro ano em o ciclo das águas começa a ser medido, oficialmente, em 1902.
Assim que o rio subir, o empresário garante que o Justo Chermont vai passar por manutenção, em um estaleiro de Manaus. Ele diz que a médio prazo voltará aos rios em atividade turística. “Precisamos fazer os ajustes conforme determinar a Marinha, para que haja a licença de navegação do navio”, informou.
O processo de reforma implica na troca de chapas de aço do casco que estiverem comprometidas pela ação do tempo.
Daílton garante que, mesmo precisando de serviços de manutenção, o navio não terá problema de flutuação quando retornar às águas. “Ele [o navio] vai voltar a operar no ramo do turismo, assim que chegar a nova licença”, acrescentou.
O empresário expressa orgulho pela trajetória histórica do Justo Chermont, adquirido por ele há ao menos vinte anos. “Nosso navio já esteve em águas peruanas para fazer parte do filme Diários de motocicletas”, lembra.
Quando retornar às águas, segundo o empresário, o novo Justo Chermont vai atender a turistas em viagens ao redor de Manaus. Serão passeios pelo Encontro das Águas e arquipélago das Anavilhanas, almoço em restaurante do Lago do Janauari, e visita cultural ao Museu do Seringueiro, no rio Tarumã, etc.
A placa de venda do navio foi retirada há algum tempo. Mas Daílton não descarta a possibilidade de vendê-lo. “Estamos sempre abertos a negócios”, justificou
Fotos: Wilson Nogueira