A humanidade não se divide entre o bem e o mal. Este maniqueísmo tem sua origem na religião, apesar do sentimento ser anterior; mas só se estrutura a partir da ideia de deus e diabo, expressa em entidades metafísicas.
O bem já serviu, e ainda serve, à prática do mal. Saquear, matar, mentir, enganar já foram feitos em nome de um bem superior. A igreja católica que o diga. Hoje, o evangelismo cristão é a nova doutrina objeto da manipulação cínica.
Fora das estruturas religiosas, ou além delas, o indivíduo vem se refestelando com suas maldades. O faz, também, em nome do bem. Mas aí repousa um cinismo mais perigoso, pois não tem foco no poder, como o faz a religião, e sim na formação de um caráter desviante, sórdido e abominável.
Ele defende a vingança, por exemplo, como sentimento e prática aceitáveis socialmente. Defende a morte não como parte de um ciclo natural da vida, mas como solução de um ou vários problemas. Olha o outro com um preconceito dizimador: não se contenta com a exclusão; quer seu extermínio físico.
Enfim. Este indivíduo superou a ideia do bem e do mal ao eliminar a linha que os separavam. Ele não quer saber se está fazendo o bem ou o mal. Basta para ele a satisfação pessoal de superioridade do seu pensamento. É uma nova prova inconteste que a humanidade guarda surpresas que transpõem velhas estruturas. O problema é que essa superação é a de volta às trevas ou a criação de uma nova escuridão.
Um autoritarismo intrínseco, construído por uma cultura autoritária que remonta os primórdios da história, envolvendo suas mais diversas formas de dominação, vem caracterizando novos indivíduos, suas personalidades e seus caracteres.
O autoritarismo exacerbado não está no campo maniqueísta do bem e do mal. Ele está além e só quer saber do seu triunfo enquanto forma e prática dominantes.
É nesta perspectiva que encontramos nas esquinas, becos e vielas indivíduos defendendo a pena de morte, o racismo, o preconceito, a opressão da mulher pelo homem e outras atrocidades.
É claro que as algumas estruturas dominantes, como doutrinas religiosas, políticas e filosóficas reforçam esse espírito dizimador, mas o que me amedronta é seu caráter autônomo: o indivíduo passou a ser sozinho uma estrutura de opressão.
Como resistir a isto: somente à partir de uma prática inversa, onde a democracia e a justiça se tornem bens culturais e humanos. Não precisamos do bem e do mal, mas de valores que ajudem a construir uma nova humanidade, fundada no respeito ao outro, na solidariedade e no amor.
*O autor é sociólogo e comunista
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