Amanda acorda às 4h da manhã para cuidar de dois familiares com deficiências. A responsabilidade com a família foi a justificativa para que ela saísse do Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), em Manaus, capital do Amazonas, e passasse a cumprir em regime domiciliar a pena pelo crime de roubo. Agora em casa, além de ser monitorada por uma tornozeleira eletrônica, ela relata outro tipo de fiscalização: a de facções criminosas. “Se tu chegar aqui fora, o cara já tá de olho em ti”, conta.
Os relatos de Amanda ilustram a influência de facções dentro e fora das 19 unidades prisionais do Amazonas.
O estado vive uma crise na segurança pública, em meio a denúncias de tortura no sistema carcerário e a dominação de redes criminosas em bairros periféricos da capital.
A situação se intensificou com a pandemia, segundo o sociólogo Fábio Candotti. Em entrevista, o pesquisador aponta que, nos últimos anos, as torturas e violações de direitos no sistema penitenciário se agravaram, ao mesmo tempo que o poder das facções criminosas cresceu.
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A Agência Pública conversou com familiares de presos, ex-detentos, pessoas que cumprem pena em regime domiciliar e ativistas pelos direitos humanos que também afirmaram que facções controlam a vida de quem passa pelo sistema penitenciário amazonense. Para preservar a identidade das fontes e evitar represálias, são utilizados nomes fictícios. Também foram alteradas e suprimidas algumas informações pessoais, como idade e sexo.
Facções vigiam os passos de detentos e ex-detentos, relata ex-presidiária
“A força é enorme. Eu vou te falar porque eu vi. Vou te falar por pessoas que estavam comigo na cela e eram [presas por] tráfico. Se o cara tá lá dentro e é [preso por] tráfico, ele tem um comandante aqui fora. Independente de ele estar preso, ele [o comando da facção] passa a ordem pela boca do advogado”, contou Amanda. Ela se classifica como uma exceção entre os presidiários por ter conseguido escapar da pressão das facções para o cometimento de crimes. “No masculino [pavilhões masculinos] é mais difícil [escapar da coação]”, diz.
Amanda afirma que ex-detentos ligados a facções nos presídios são coagidos a permanecerem nas organizações mesmo após o cumprimento das penas.
Uma pessoa que saiu da prisão só consegue se afastar do CV (Comando Vermelho) se comprovar ter se tornado frequentador assíduo de igrejas evangélicas, relata.
Do contrário, segundo ela, ou trabalha para as facções (com tráfico e confrontos armados) ou é morta.
“É a única forma que eles permitem. Aí o que acontece, a pessoa entra num regime. ‘ah tu queres servir [servir à Deus]? Beleza, tu vais entrar no regime’. Eles passam a acompanhar aquela pessoa por um bom tempo, passam a verificar se ela está indo para a igreja mesmo, se ela mudou de vida, passam a visitar a casa dela, a fazer perguntas para os vizinhos”, conta.
Opções são entrar para facções ou morrer lá dentro, relata familiar de presidiário Numa das últimas vezes que Glória — mãe de um jovem preso por tráfico de drogas — visitou o filho, no Centro de Detenção Provisória Masculino II (CDPM 2), ela sentiu medo ao caminhar nos corredores que dão acesso à sala onde acontecem os encontros.
Isso porque o encontro foi agendado para a mesma data das visitas de familiares do PCC, facção rival à do filho: ele faz parte do CV.
Ela diz ter se cadastrado para a visita por meio de um aplicativo disponibilizado pela Seap.“Não sei se foi intencional ou não, mas foi muito perigoso”, declarou, pontuando que o rapaz teria se juntado ao CV após ser ameaçado de morte por outros internos. “Era isso, ou morrer lá dentro. Ou escolhe um lado ou morre”, acrescentou.
O medo de Glória reflete a tensão nos presídios do Amazonas, de onde sairiam ordens para que familiares de presos de unidades dominadas por facções rivais não façam contato entre si, explica Carla, esposa de um detento preso no Compaj por tráfico de drogas. “Ninguém pode conversar com os familiares dos internos do CDPM 2. A gente é proibido [de conversar], com pai, mãe, seja senhorinha ou uma criança”.
Dentro dos presídios, não há a alternativa de uma posição de neutralidade ante as facções, revelou a esposa. “Para a nossa própria segurança [de familiares] eles evitam falar para a gente sobre isso. Nos dizem que é uma forma de sobrevivência. Por que se tu falas que tá neutro eles podem entender que tu estás do outro lado. A pessoa nem quer, mas é a forma de sobreviver no sistema”.
Ela reforçou o que disse Amanda sobre as condições para deixar o CV. “O que ouvimos é que só aceitam sair [da facção] se for para ir para igreja, como eles falam, ir para a benção. No caso do meu marido, quando ele saiu [para o período em que cumpriu a pena em regime semiaberto] simplesmente não contactou mais ninguém [da facção]. A gente trocou de número e a gente vivia no nosso canto isolado. Só assim a gente conseguiu ter paz”.
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