O governo do presidente Jair Bolsonaro desviou a finalidade de R$ 7,5 milhões doados especificamente para a compra de testes rápidos da covid-19 e repassou a verba ao programa Pátria Voluntária, liderado pela primeira-dama, Michelle.
No dia 23 de março, a Marfrig, um dos maiores frigoríficos de carne bovina do país, anunciou que doaria esse valor ao Ministério da Saúde para a compra de 100 mil testes rápidos do novo coronavírus.
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Naquele momento, o Brasil enfrentava as primeiras semanas da pandemia e a falta desse material, enquanto a OMS (Organização Mundial da Saúde) orientava testar a população.
Dois meses depois, no dia 20 de maio, segundo a empresa disse por escrito à Folha, a Casa Civil da Presidência da República informou que o dinheiro seria usado “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”.
No dia 1º de julho, no entanto, com o dinheiro já transferido, o governo Bolsonaro consultou a Marfrig sobre a possibilidade de utilizar a verba não mais nos testes, mas em outras ações de combate à pandemia. Os recursos foram então parar no projeto Arrecadação Solidária, vinculado ao Pátria, de Michelle Bolsonaro.
Como a Folha mostrou nesta quarta-feira (30), o programa liderado por Michelle repassou dinheiro do Arrecadação Solidária, sem edital de concorrência, a instituições missionárias evangélicas aliadas da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos), para a compra e distribuição de cestas básicas.
Os R$ 7,5 milhões da Marfrig representam quase 70% da arrecadação do programa até agora —R$ 10,9 milhões.
Na ocasião das doações para os testes de Covid, a empresa citou o Ministério da Saúde e celebrou o gesto. “Esperamos que nossa iniciativa seja seguida por outras companhias brasileiras”, disse o presidente do conselho de administração da empresa, Marcos Molina.
A empresa também lembrava que, um dia antes, em 22 de março, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, informou que o governo tentaria firmar parcerias com a iniciativa privada para financiamento de parte das compras dos kits.
Reportagem da Folha publicada em 1º de abril mostrou que, para conseguir fazer os testes na época, era necessário ser profissional de saúde ou de segurança, estar em estado grave ou ter morrido.
Segundo a Marfrig, a Casa Civil da Presidência, responsável por coordenar o programa da primeira-dama, enviou em 20 de maio “comunicação oficial” com detalhes sobre o programa de voluntariado e informando que os valores doados deveriam ser depositados numa conta da Fundação do Banco do Brasil, gestora dos recursos do Pátria, “com fim específico de aquisição e aplicação de testes de Covid-19”.
“Dias depois, a Marfrig realizou a transferência bancária do valor proposto, de acordo com as orientações da Casa Civil”, relatou a empresa à Folha.
No dia 1° de julho, segundo ela, o destino do dinheiro transferido ao governo mudou.
A empresa diz ter sido então consultada “sobre a possibilidade de destinar a verba doada não para a compra de testes por parte do Ministério da Saúde, mas para outras ações de combate aos efeitos socioeconômicos da pandemia de Covid-19, especificamente o auxílio a pequenos negócios de pessoas em situação de vulnerabilidade”.
“Como a ação estava diretamente ligada à mitigação dos danos causados pela pandemia, a Marfrig concordou com a nova destinação dos recursos doados”, disse a empresa.
A Folha questionou a Casa Civil sobre o caso, mas não houve resposta até a conclusão da reportagem.
Recursos usados
O programa da primeira-dama já consumiu cerca de R$ 9 milhões dos cofres públicos em publicidade pagos pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência.
A definição de quem recebe os recursos doados ocorre “no âmbito do Conselho de Solidariedade”, composto por representantes dos ministérios da Mulher, do Desenvolvimento Regional, da Ciência e Tecnologia, Casa Civil e Secretaria de Governo.
Segundo a Casa Civil, o dinheiro foi usado para a compra e distribuição de cestas básicas a mais famílias vulneráveis à pandemia.
De acordo com ata de uma reunião do grupo do dia 11 de maio, obtida pela Folha por Lei de Acesso à Informação, houve discussão em relação à destinação dos valores também para a compra de medicamentos.
O conselheiro Pedro Florêncio, que representa a Casa Civil, disse que “no seu entendimento, medicamento também deve ser considerado uma prioridade” entre as entregas do programa. No entanto, a secretária-executiva do programa, Adriana Pinheiro, disse acreditar que “alimentos e produtos de higiene básica seriam itens prioritários”.
Viviane Petinelli, representante do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, afirmou no encontro que, por sua experiência na pasta, “todas as solicitações que estão recebendo são de alimentos e EPIs (Equipamento de Proteção Individual), e nenhuma de medicamentos”.
Na mesma reunião, Adriana Pinheiro sugeriu que os recursos fossem enviados à Associação de Missões Transculturais Brasileiras (AMTB), indicada por Damares, como revelou a Folha.
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Foto: Alan Santos/PR