SOCIÓLOGA AFIRMA QUE OBRA DE WILSON NOGUEIRA É IMPORTANTE E NECESSÁRIA PARA SE COMPREENDER O BOI-BUMBÁ DE PARINTINS COMO FENÔMENO SOCIOCULTURAL
Lucynier Omena*
Valorizo o hábito da leitura. Leio para me manter informada, para mergulhar nas fantasias de um romance, para saber um pouco mais sobre a vida de alguém famoso numa biografia, seja ela autorizada ou não. Leio constantemente sobre temas de minhas pesquisas e outros relevantes para minha jornada acadêmica.
Assumo sem susto que encontrei todos esses ingredientes já no primeiro capítulo do livro Boi-bumbá: imaginário e espetáculo na Amazônia , de Wilson Nogueira. A opção do autor em utilizar a primeira pessoa na narrativa nos leva a transitar entre os teóricos fundamentais para compreensão da nossa realidade e analisar de forma lucida a vivência social cotidiana.
Wilson transformou em livro a tese de doutorado defendida em 2013, pelo Programa de Pós-Graduação Sociedade e Cultura na Amazônia (PPSCA/UFAM). E foi além: incorporou sua história individual e as pessoas com quem conviveu quando criança em Parintins(AM) ao dar os primeiros passos na educação formal. Ele expôs as angústias que o aprofundamento do conhecimento nos traz.
O autor usou como parâmetro para medir seu crescimento intelectual as obras que escreveu paralelamente ao percurso na universidade, mesclando a autoria de livros infanto-juvenis com suas produções acadêmicas. Um passo a passo de uma experiência que muitos compartilham, mas poucos são capazes de elencar em narrativa de forma tão lúcida.
Ao definir o doutorado como “o compartilhamento de ideias e ações que ocorrem numa trajetória de vida”, Wilson superou essa fase, considerando a conquista do título mais que o cumprimento de um ritual de passagem ou a ascensão na hierarquia acadêmica. Foi quase como chegar num estágio da vida e serenar.
As angústias persistem, e são agora o principal estímulo para continuar o que melhor sabe fazer: compreender, no espaço amazônico, os conflitos advindos com a transformação que boi-bumbá trouxe a Parintins. A festa tornou-se mercadoria, um objeto de desejo e produto de consumo que mexe na economia local e gera empregos.
A brincadeira foi reinventada, e as lendas e seus personagens adquiriram novos significados. A sonoridade das toadas acompanhou a evolução tecnológica e a musicalidade assimilou batidas ao gênero word music .
As alegorias revelaram artesãos e artistas que se tornaram ícones na indústria do entretenimento nacional. Parintins ao mesmo tempo que ousa, que mergulha na indústria de massa, hesita para não perder sua identidade.
Julga-se tradicional, porém adapta-se às outras culturas e à modernidade visando assegurar sua continuidade como produto. O globalizado também transformou-se, a Coca-Cola mundialmente reconhecida pela cor vermelha, sem pudor veste-se de azul para conquistar o apoio dos torcedores do Caprichoso.
Essas informações o leitor vai colhendo no decorrer da narrativa. Acompanhamos o autor ao refazer suas viagens de volta à cidade, ora de barco, ora de avião. No encontro e nos diálogos trocados com conterrâneos, e com as pessoas que buscam captar a magia da ilha, mesmo que fora do período da festa.
Ao mesmo tempo, o conflito gerado nele mesmo para realizar o reconhecimento e o estranhamento, o ser de fora e ser da ilha, o ser azul ou vermelho. O garoto brincante e o homem da cidade esforçam-se para manter sua identidade, tendo o rio e a viagem de barco como o elo que o prende ao lugar de origem. É nas conversas com os outros viajantes que redescobre e descortina a Parintins real.
O festival cresceu e virou o axé que movimenta a economia do município, que precisou adaptar-se ao ritmo imposto pelo processo globalizante. A festa que a princípio era uma brincadeira nos currais, hoje é realizada num imenso prédio de concreto armado com espaços reservados para administração, oficinas e escolas sde arte, biblioteca, exposições artísticas.
Mesmo com resistência, os parintinenenses aderiram ao processo que move a indústria cultural e que obriga os organizadores a constantes renovações e adaptações na festa. De imutável apenas a rivalidade entre os dois bois.
Entretanto, nestes tempos em que se afirma que o Brasil tornou-se evangélico, descubro em Parintins uma Igreja Católica extremamente atuante e em sintonia com seus fiéis, a ponto de transformar a festa sagrada, que é a procissão em honra a Nossa Senhora do Carmo, padroeira da cidade, numa continuidade do festival.
Na realidade, o vínculo entre as duas celebrações existe desde a origem, pois foi na quadra da Igreja que tudo começou. A projeção adquirida pela festa no decorrer do tempo gerou muitas críticas por parte dos religiosos, sobretudo, os biquínis das brincantes.
Atualmente, ainda existe uma certa reserva à festa em si, porém, com um viés mais voltado para as questões sociais, como a proliferação do tráfico de drogas e a violência. Concretamente, há o entendimento de que a movimentação de dinheiro que o boi trouxe para a ilha também tem retorno para a igreja.
As atividades nos currais iniciam-se com a celebração de uma missa. Uma segunda é realizada antes das apresentações. A criatividade e o trabalho são abençoados, assim como a performance dos brincantes na apresentação final.
O silenciar dos tambores é uma passagem, pois como num contínuo, “o fim do jogo suspende os excessos do louvor ao boi e inicia a devoção a Padroeira” como Wilson nos revela. Até o início dos anos 2000 cabiam às instituições Garantido e Caprichoso garantir grande parte dos preparativos da festa.
Atualmente, a ornamentação do andor é feita por Juarez Lima, um brincante do Caprichoso, em retribuição à da doença de um filho, graça concedida por Nossa Senhora do Carmo, compromisso assumido perante a comunidade até o fim de seus dias.
Lima acrescentou uma inovação: depois de um sonho, que considerou como uma revelação divina, a imagem da padroeira passou a chegar à cidade através do rio, iniciando a tradição da procissão fluvial.
A cidade que se tornou a “Parintins pra todo mundo ver” teve participação direta dos padres católicos nessa transformação, e como prova disso Wilson nos brinda com alguns exemplos: um deles se deu em 2011, período em que o autor realizava seu trabalho de campo. A festa de Corpus Christi foi anitecipada em uma semana, de modo a não conflitar com os dias do festival.
O horário dos ensaios também sofreu alterações. O que sempre teve início no final da tarde, com o aumento do número de pessoas a participar da preparação da festa, os dirigentes transferiram o horário para às vinte e uma horas, depois de terminada a missa.
Aparentemente, podemos supor que a força do poder econômico prevaleceu diante da celebração do sagrado. Contudo, pelo que pude extrair da narrativa, não foi somente por submissão à exigência do mercado.
Era, antes, uma deferência a religião católica e ao padre. Uma forma de assegurar a importância dos dois eventos, e que um não será preterido em favor do outro. O festival surgiu em meio a religiosidade, e os parintinenses, mesmo divididos entre tradição e mundo globalizado, asseguram que a dualidade sagrado/profano continuará ainda por muito tempo, como eixo norteador de seu cotidiano.
*A autora é socióloga e MSC em Sociedade e Cultura na Amazônia(PPSCA/Ufam).