Wilson Nogueira [Texto e fotos]
Li Inglês de Souza , pela primeira vez, ainda na infância, nas aulas de Língua Portuguesa do professor Paulo Coimbra, na escola estadual São José Operário, em Parintins (AM). Encantei-me com o humor e a leveza de uma crônica sobre o medo de viajar de avião”. Sorridentes são os que desembarcam e silenciosos são os que se encaminham para voar, iguais gado tangido para o matadouro. Jamais esqueci esse texto.
Agora, com algumas horas de voo, deparo-me com Contos amazônicos s obre a mesa de trabalho do editor Isaac Maciel, dono da Editora Valer . Não hesitei em lê-lo. Trata-se de uma obra de 1893, agora em edição organizada e atualizada pelo escritor Tenório Telles.
Li os nove contos, distribuídos em 160 páginas, de um eito só. Narrativa envolvente, vigorosa e, sobretudo, surpreendente a cada parágrafo. As qualidades e importância dessa obra para a literatura brasileira estão mencionadas na orelha assinada por Telles e na apresentação do professor José Almerindo A. da Rosa. Por isso, decidi situá-lo do ponto de um leitor com vivência na Amazônia profunda, como é, também, o caso de Herculano Marcos Inglês de Sousa (1853-1918), nascido em Óbidos (PA).
Em Contos amazônicos , Inglês de Sousa mergulha no imaginário das gentes dos beiradões e sertões da sua época, meado século 19. Eu, nascido na segunda metade do século 20, cresci ouvindo as mais variadas versões das histórias que traduzem a realidade e os sonhos dos povos amazônicos. Inglês de Sousa, certamente, é um observador situado na casa grande dos senhores do cacau, os cacaualistas, mas sua escrita, em razão das minucias, pode conduzir o leitor mais atento a uma leitura de contramão.
Entre nós, quando eu criança, eram correntes as histórias da captura dos jovens, principalmente caboclos, índios e negros, para combater na guerra do Paraguai. Dava-se conta de que não foram poucos os que preferiram se jogar no rio a guerrear contra as tropas do general Solano López, apresentado aos brasileiros como o diabo em carne e osso.
Não foi o que pôde fazer Pedro, filho de arrimo de dona Rosa, personagem chave do conto Voluntário ; ele, foi forçado a seguir à guerra em decorrência de uma trama autoritária e diabólica motivada por inveja; ela, atormentada pela ausência do filho, tornou-se recitadora de uma quadrinha exaltando dom Pedro Segundo, nas praias de Santarém (PA)
Inglês de Sousa arremessou-me, também, às rodadas de conversa da boca da noite com os contadores de causos. Em Parintins, a então Vila Bela de Contos amazônicos , emoldurávamos Piquichito, marido de dona Sabá, pai do Ladico e do Gudu, para ouvi-lo revelar, sem pestanejar, que havia testemunhado uma velha se engerar em porca à meia noite de uma sexta-feira sem lua e sem estrelas.
Ou ainda que nas terras do campo grande, onde se localiza hoje o aeroporto Júlio Belém, correu atrás de um veado baleado e cambaleante até entrar pela noite e se perder na mata, sem conseguir agarrá-lo. Assim, pude ler atento, imaginando-me na tenra idade, os contos A feiticeira , Amor de Maria , Acauã , O baile do Judeu e o Gado do Valha-me Deus .
Telles elegeu Acuaã como o mais belo entre os contos que resistem à colonização do imaginário amazônico; eu me regozijei com o Gado do Valha-me Deus, uma narrativa cheia de suspense, e com uma mensagem de que os seres humanos desconhecem os seus mistérios e os da natureza. Mas é igualmente maravilhosa a versão do desencanto e encanto do boto em O baile do Judeu .
Ele, o boto , rouba a cena da festa da alta sociedade da Vila ao dançar com uma respeitada dama, mesmo sendo um estranho. Seus passos firmes, elegantes e cheios de graça encantam não somente damas, mas a todos os que estavam no baile: dos espectadores aos músicos. O desfecho dessa trama é tão fantástico que só lendo-o mesmo.
Minha memória também se encharcou das histórias que ouvi sobre a guerra da Cabanagem (1835-1840). Os velhos afirmavam que os povoados e cidades se esvaziavam diante do avanço dos cabanos vindos de Belém rumo a Manaus, pelo rio Amazonas e seus estratégicos afluentes. Os revoltosos contra as forças legais do Império eram anunciados como assassinos impiedosos, estupradores e ladrões.
O tema Cabanagem está presente nos contos O donativo do Capitão Silvestre , A quadrilha de Jacó Patucho e O Rebelde. Na família da minha esposa, Maria do Rosário, conta-se que a sua tataravó, moradora de Vila Bela, embrenhou-se nas matas, provavelmente as do Andirá, carregando uma criança de colo, que veio a ser a avó da minha sogra, a dona Benedita. A tataravó e sua criança foram acolhidas por uma aldeia indígena e de lá só saíram após o fim da guerra.
O cabano Jacó Patucho é, no conto homônimo, a encarnação da maldade e, por isso, o terror dos legalistas e das populações induzidas ao apavoramento por esses. Os anseios dos cabanos por liberdade política e justiça social são parcos nesses contos, certamente devido ao lugar de fala de Inglês de Sousa.
Paulo da Rocha, personagem central de O rebelde , é quem dá uma voz de contramão aos cabanos. A certa altura diz o narrador, filho do juiz de paz da Vila Bela, amigo do rebelde: “Paulo da Rocha dissertou longamente sobre as causas da cabanagem, a miséria originária das populações inferiores, a escravidão dos índios, a crueldade dos brancos, os inqualificáveis abusos com os quais esmagam o pobre tapuio, a longa paciência destes”.
Rocha é um militante sobrevivente da Revolução Pernambucana de 1817 que escapou para a floresta amazônica, acompanhado de uma filha, onde passou a viver discretamente. Ele compreende o contexto sociocultural da revolta amazônica, mas não se junta aos cabanos, os brasileiros, embora tenha sido preso e jogado na cadeia como se fosse um deles.
À essa altura, posso afirmar que ler Contos amazônicos é um ato prazeroso e reflexivo. Esse livro pôs-me diante de histórias tão distantes e ao mesmo tempo tão próximas.