Por Wilson Nogueira*
Se há um ícone para a afirmação “feio, porém gostoso”, este deve ser o bagre bodó ou acari, iguaria da culinária ribeirinha pan-amazônica.
Cascudo, galhudo, cabeça achatada, esse peixe parece mais um bichinho pré-histórico.
E como se não faltasse fatos para torná-lo ainda mais estranho e, por isso, até repugnante aos estômagos de primeira viagem, ainda se alimenta de micro-organismos que se afixam no lodaçal.
Por isso são endêmicos nos lagos e lagoas e, na época da vazante, são pescados de malhadeira aos montes, mas precisamente nos meses de setembro, outubro e novembro, nas regiões do Médio e Baixo Amazonas.
Com o bodó se faz vários pratos, mas o preferido dos ribeirinhos é o bodó assado, com farinha de mandioca, tipo caroçuda ou ovinha, limão, pimenta malagueta fresca ou no tucupi.
Há pratos mais sofisticados: bodó no tucupi, bodó guisado, caldeirada de bodó, mojica de bodó, fritada de piracuí (farinha de peixe) de bodó, mojica de bodó, e por aí vai-se a lista a depender da criatividade do chefe ou da chefa de cozinha.
Trata-se de uma carne de excelente textura e sabor sem igual. Pega um tempero que é uma beleza!
Quem já teve a oportunidade de degustá-lo e não o fez, sempre se define como antipático à sua aparência.
Puro preconceito!
Mas, certamente, não só com bodó, uma vez que “as aparências também enganam”.
Feio, porém gostoso e amado, o bodó é reverenciado na cultura popular amazônica.
O poeta e sambista parintinense Chico da Silva eternizou o piracuí de bodó em sua Canção de Parintins , escrita em parceria com o compositor Fred Góes, também nascido em Parintins.
Quando compuseram o hit que se tornou o hino oficioso de Parintins, os dois moravam em São Paulo, no final da década de 1970. E, quando por lá se encontravam, eram sempre acometidos “daquela saudade das coisas da terrinha”.
Saudade da família, da paisagem dominada pelas águas e florestas, e seus animais e frutos, inclusive os da dieta ribeirinha: bodó, tracajá, peixe-boi, pirarucu, tucunaré; marimari, taperebá, murici e patauá.
Assim se confirma a máxima de que a comida é um dos traços mais marcantes das culturas de quaisquer povos.
Pode até não rimar, mas quem vem ao Amazonas e prova um prato de bodó sempre voltará aqui; e se não voltar, certamente lembrará dele para o resto da vida.
Na música, o bagre feioso também ganhou nome de banda de rock: Bodó Hell , formada pela fusão dos roqueiros e roqueiras das bandas Crushers e Piracuí aditivado , em 2011.
Bodó Hell faz parte do movimento de contracultura à cultura hegemônica do boi-bumbá parintinense na cultura amazonense.
O bodó também é símbolo das culturas marginalizadas, ou das culturas que habitam o outro lado do paraíso.
Na esteira das homenagens ao amado bagre, estão os festivais.
“Festival do bodó”
Anualmente, na primeira semana de outubro, na aldeia mura do Lago do Sampaio, no município de Autazes (AM), realiza-se o festival de verão cujo apelo de marketing são os pratos de bodó.
Em Autazes, os frequentadores do festival já o apelidaram de “festival do bodó”.
“Vendo mais de mil bodós no dia do festival”, disse-me o pescador Nelson da Costa Cabral, o Teco, no último sábado, véspera do evento deste ano.
Teco e outros pescadores abastecem mais de uma dezena de bancas que vendem comida e bebidas na praia do lago do Sampaio, onde são pescados os bodós.
“Recebemos turistas de Manaus, Itacoatiara, Maués, Nova Olinda do Norte e Lábrea. A maioria vem comer bodó fresco, pescado no dia anterior, mas mantidos vivinhos em tanques”, explica, orgulhoso, o locutor Oliveira Lemos da Silva, que anima o festival.
Em Manaus, uma apreciadora bicho feio e desengonçado, não o escondeu entre meias-palavras.
Aurineth de Oliveira, percebendo um potencial de grife, criou o Festival Solidário do Bodó, com o qual ela arrecada, anualmente, dinheiro e calor humano para ajudar a manter a Fundação mãos que criam artes.
O evento terá lugar no Clube dos Subtenentes e Sargentos da Polícia e do Corpo de Bombeiros, conjunto Beija Flor II, no bairro de Flores.
Haverá fartura e variedade de pratos com bodó e guarnições com produtos e temperos amazônicos.
A fundação cuida de pessoas em tratamento de câncer, por meio da doação de alimentos, remédios, roupas etc. O bodó, nesse contexto, mobiliza e sensibiliza pessoas para uma causa justa.
Antes de irmos a fim desse elogio, é preciso dizer que o bodó – assim como outras espécies animais e vegetais – deve ser preservado da matança predatória
Não só porque ele é importante e necessário à alimentação humana, mas porque é um ser vivo e, como tal, está entrelaçado a outras vidas, inclusive a dos humanos.
É isso: o bodó é comida na mesa, o bodó é samba, o bodó é rock, o bodó é contracultura, o bodó é festa, o bodó é solidariedade, o bodó é amor e paixão!
O bodó não é tecnologia!
O bodó não está na Globo.
Mas o bodó é pop.
Tá no BNC.
* O autor é sociólogo, doutor pelo programa Sociedade e Cultura na Amazônia/Ufam
Foto: BNC AMAZONAS